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O ecossistema político mudou e dificulta a governabilidade

O ecossistema político mudou, ficou mais fluido. Os partidos no Congresso, na sua maioria, não tem identidade clara, são legendas gelatinosas

Sérgio Abranches, para Headline Ideias
#POLÍTICA 10 de mai. de 237 min de leitura
Foi uma mudança estrutural, sistêmica e comportamental que tornou a formação de maiorias no Congresso, particularmente na Câmara dos Deputados, mais difícil e mais cara do ponto de vista de concessões em verbas e cargos. Foto: Daniel Marenco/HDLN
Sérgio Abranches, para Headline Ideias10 de mai. de 237 min de leitura

O governo enfrenta dificuldades no Congresso, não apenas por fragilidades na articulação política. Há outros fatores, antecedentes, que dificultam a governabilidade. Um desses fatores é estrutural, a Câmara tem hoje uma composição em que predominam legendas médias multiplicando os pontos de veto. A coalizão é líquida, com maioria de partidos gelatinosos que, no calor da política, se liquefazem.

A fragmentação partidária na Câmara dos Deputados caiu 32% com a proibição de coligações nas eleições proporcionais e elevação da cláusula de barreira. O tamanho médio das bancadas com representação na Câmara, porém, continuou baixo. Saiu de 20, para 22 cadeiras. Este é o paradoxo que a governabilidade enfrenta hoje. A queda da fragmentação não produziu a concentração das representações partidárias suficiente para produzir coalizões mais enxutas e consistentes. Entre os partidos com pelo menos 10 cadeiras, o tamanho médio das bancadas aumentou de 36 para 42 cadeiras.

Além disso, os partidos que funcionavam como pivôs de sustentação da maioria nas coalizões, perderam musculatura e identidade. No governo Fernando Henrique Cardoso, o PSDB compartilhou a coalizão com o PFL e com o PMDB. A coalizão era enxuta, chegava à maioria com três partidos. No governo Lula, a coalizão tinha como pivôs o PT, pela esquerda, e o MDB, pelo centro, ou centro-direita. Sua coalizão era um pouco maior, mas ainda manejável, com seis partidos. No Senado, o quadro é menos disperso, mas verifica-se também o debilitamento dos partidos.

O PSDB definhou e perdeu a identidade. O MDB perdeu musculatura. O PFL/DEM fundiu-se com o PSL e perdeu a identidade. O PSL foi uma casca que inchou com a votação de Bolsonaro, nunca teve identidade ou espinha dorsal. O DEM, ao se transformar em União Brasil, perdeu todas as suas referências. O União é um partido irremediavelmente dividido. Não reúne condições mínimas para cumprir o papel que o PFL cumpriu no governo FHC. O que adianta dar ministério a um partido como o União Brasil?

Nova lógica

O orçamento secreto mudou a estrutura de preferências dos parlamentares. Preferem poder ter verbas orçamentárias para destinarem como quiserem para suas bases, a ter cargos com influência sobre um orçamento minimamente coordenado pelo Executivo. Lula, a esta altura, já deve ter percebido que não adianta apenas entregar ministérios aos partidos.

A lógica mudou. Aumentaram os pontos de veto, muitos deles no chamado centrão. Mudaram as preferências dos parlamentares. Essas preferências não mudaram quando o Supremo Tribunal Federal considerou o orçamento secreto inconstitucional. Foram criadas novas emendas para compensar, mas elas não têm a mesma flexibilidade e discricionariedade que faziam o orçamento secreto tão atrativo.

O ecossistema político no Congresso sofreu mutações relevantes. A articulação política terá que se adaptar a elas. O que funcionou no passado para manter minimamente coesa e majoritária a coalizão de governo não funciona mais. Foi uma mudança estrutural, sistêmica e comportamental que tornou a formação de maiorias no Congresso, particularmente na Câmara dos Deputados, mais difícil e mais cara do ponto de vista de concessões em verbas e cargos.

Emendas da desigualdade

Ao contrário do que dizem os defensores das emendas, sua funcionalidade não vai além de serem moeda de troca por votos a favor de medidas de interesse do governo. Mesmo esta funcionalidade pode ser menor do que se imagina. Bolsonaro abdicou de governar e o orçamento secreto foi a peça com que delegou o poder executivo ao Legislativo. Seu único interesse no Congresso era a blindagem no caso dos pedidos de impeachment e de uma eventual autorização para ser processado. Já havia vários inquéritos contra ele durante a segunda metade de seu mandato.

As emendas têm impacto devastador sobre a formulação de políticas públicas. Não me convence a tese de que o efeito das emendas é positivo porque aumenta o bem-estar na base eleitoral dos parlamentares. Primeiro, é um efeito temporário, que depende do deputado ou senador continuar nas graças de quem faz a distribuição. No governo Bolsonaro, os presidentes da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco.

Segundo, é desigual. As verbas são distribuídas em função da proximidade do parlamentar com os gestores das emendas e não de acordo com as necessidades e prioridades da política de cada setor. Este efeito é particularmente negativo nos campos da educação e da saúde pública. O resultado é que mas emendas aumentam a desigualdade. Beneficiam os municípios na base eleitoral dos parlamentares que ficam com as maiores verbas e prejudicam os que não são base eleitoral daqueles que controlam a maior parte das verbas de e emendas.

Se as verbas orçamentárias são alocadas discricionariamente, o Estado perde capacidade estratégica e as politicas públicas relevantes para o programa de governo são prejudicadas. Isto é verdade, também, para o sistema de emendas parlamentares, antes do orçamento secreto. Piorou muito com ele. Com o novo acerto, pelo qual as verbas fluem por emendas individuais, de bancada e do relator, ainda que aumente a transparência, a discricionariedade, a ineficácia e o efeito redistributivo negativo persistem.

Soluções dependem do próprio Congresso

A formação e manejo das coalizões de governo são muito mais difíceis neste ecossistema político alterado e não há alternativa de curto prazo. As mudanças necessárias para garantir a formação de maiorias operativas dependem do ciclo eleitoral que é de quatro anos. A possibilidade de formular e implementar políticas públicas estratégicas imprescindíveis para pôr o país no rumo das mudanças estruturais globais das próximas décadas depende do apoio da maioria do Congresso. Cheque mate.

Um caminho para diminuir essa dependência do Legislativo seria retirar as políticas públicas da Constituição. Como foi feito com o arcabouço fiscal. Reduz-se o tamanho da maioria necessária. Medida ainda mais ampla, seria a que o governo Lula tentou no caso do saneamento. Retirar a operacionalização das políticas públicas do âmbito dos projetos de lei, para o escopo dos decretos presidenciais. O Congresso sempre pode revogar os decretos, usando seu poder de fiscalização.

No caso do saneamento, os decretos de Lula eram muito ruins. Eles retornavam ao status quo, cujo resultado tem sido a calamitosa situação do saneamento no país. Mas "deslegislar" os detalhes operacionais das políticas públicas é uma medida a ser considerada.

No Brasil, as políticas públicas estão na Constituição ou dependem de lei por um problema de falta de confiança. Para garantir a efetivação de direitos ou demandas setoriais, leva-se para a Constituição ou para a legislação. Mas, a experiência mostra que não garante a realização desses interesses e engessa as políticas públicas em um ambiente social local e global em mudança.

O Congresso legisla demais e fiscaliza de menos. Em 2021, o Congresso aprovou 244 novos projetos de lei. Nenhuma país precisa de duas centenas de leis todo ano. É uma medida equivocada de eficácia legislativa. A eficácia corresponderia à aprovação de projetos que enfrentem problemas novos e pela fiscalização: comissões efetivas, audiências públicas para valer, CPIs consequentes, reprovação de maus nomes para cargos que requeiram aprovação do Legislativo. Convocação efetiva de ministros e outras autoridades para prestar contas, sem a faculdade de transformar convocação em convite, entre outras.

O Congresso legisla de mais e fiscaliza de menos. Em 2021, o Congresso aprovou 244 novos projetos de lei. Nenhuma país precisa de duas centenas de leis todo ano. Foto: Daniel Marenco/HDLN
O Congresso legisla de mais e fiscaliza de menos. Em 2021, o Congresso aprovou 244 novos projetos de lei. Nenhuma país precisa de duas centenas de leis todo ano. Foto: Daniel Marenco/HDLN

Soluções mais definitivas, que permitiriam maior eficácia do presidencialismo de coalizão, dependeriam de mudanças nas regras orçamentárias e tributárias com descentralização de obrigações e receitas. A descentralização de um orçamento impositivo, permitindo apenas emendas corretivas permitiriam ao Executivo Federal se tornar um gestor estratégico de políticas públicas.

Desta forma, teria autonomia política agir de forma redistributiva, compensando desigualdades alocativas. Poderia vir a ter um orçamento estratégico, por ele formulado e aprovado pelo Congresso, passando a impositivo, voltado para a inovação. Há necessidade, por exemplo, imediata de uma transformação no sistema educacional de modo a sincronizá-lo com as mudanças que ocorrem e ocorrerão com maior extensão e profundidade na estrutura de ocupações e do emprego.

A descentralização recuperaria a capacidade estratégica do Estado, no âmbito federal, permitindo olhar o longo prazo para desenhar estratégias que permitam ao país superar os entraves que estão atrasando o país. Estamos perdendo o timing para pegar com sucesso as ondas da mudança que estão a passar pelo mundo.

* Sérgio Abranches é sociólogo, cientista político e escritor. É autor de “Presidencialismo de coalizão”. 

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