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Coalizão líquida
As coalizões no Brasil sempre foram móveis. A diferença, agora, é que as coalizões se tornaram ainda mais fluidas e as maiorias mais disformes. O desafio para o governo é maior e a margem de erro menor
Sérgio Abranches, para Headline IdeiasSe o sociólogo Zygmunt Bauman tivesse se debruçado sobre a política brasileira, teria encontrado uma das mais claras expressões do líquido. As coalizões brasileiras sempre foram gelatinosas, desde a república de 1946. Explico, são coalizões com baixo comprometimento ideológico ou programático, cujo comprometimento com o governo é condicional e precário.
No Brasil, as coalizões não se estruturam a partir de compromissos firmes entre partidos com programas afins. Elas se organizam como forma de compartilhamento do orçamento hipercentralizado no âmbito federal e do poder de decisão sobre políticas públicas monopolizadas pelo governo da União.
O que se convencionou chamar de base do governo é uma combinação heterogênea de partidos com interesses muito distintos. Ser da base não significa um compromisso firme de votar com o governo, mas apenas a promessa de votar sob determinadas condições, em cada caso.
É claro que, quanto maiores as bancadas de partidos mais próximos nas suas preferências e nos interesses que representam, menos partidos serão necessários para compor uma coalizão de governo majoritária. Mas, se houver necessidade de aprovação de emendas à Constituição, a maioria de 60% implicará na necessidade de ampliar o número de partidos na coalizão. Quanto menor o número de partidos para chegar à maioria necessária, maior a probabilidade de coesão.
Desconstitucionalizar políticas públicas
Este é o problema mais fácil de resolver. O procedimento adotado pelo governo Lula 3, ainda antes da posse, de desconstitucionalizar o arcabouço fiscal, mostrou o caminho. Quanto mais detalhes de políticas públicas forem retiradas da Constituição e transferidas para a legislação ordinária, melhor.
Deixar na Constituição apenas as definições gerais e remeter o desenho das políticas para leis complementares, reduziria dramaticamente a necessidade de coalizões que chamo de “excedentes”, que ultrapassam a maioria absoluta, isto é 50% mais um do total de cadeiras na Câmara e no Senado.
Coalizões de maioria absoluta tendem a permitir a formação de maiorias mais homogêneas e obter maior fidelidade ao governo, do que coalizões excedentes.
Ruptura levou a coalizões líquidas
Volto ao ponto da liquidez das coalizões. As coalizões se tornaram muito líquidas com a ruptura do eixo partidário estruturador de governo e oposição, nas eleições de 2018. Com bancadas mais robustas, os dois partidos “presidenciais”, PT e PSDB, ancoravam as duas coalizões decisivas, a do governo e a da oposição. O PSDB, mesmo perdendo a presidência, era capaz de aglutinar a parte mais consequente da oposição no Legislativo. O mesmo era verdade para o PT, nos governos FHC.
Com a miniaturização do PSDB, que me parece irreversível, o sistema perdeu um dos dois partidos-âncora centrais. Além disso, eles contavam com dois partidos que funcionavam como âncoras auxiliares. O MDB, que fez este papel tanto nos governos do PSDB, quanto nos do PT, até o rompimento no governo Dilma 2. E o PFL, que serviu de âncora auxiliar nos governos FHC. O espaço vazio deixado pelo ocaso do PSDB complica bastante as relações governo-oposição.
Presidente, encolheram os partidos
O MDB perdeu tamanho e, com isto, sua eficácia como âncora auxiliar, diminuiu. O PFL, depois Democratas, sofreu miniaturização fatal, como o PSDB. Hoje é parte menor do União Brasil, que não tem consistência interna suficiente para exercer o papel de âncora-auxiliar. Até porque, nasceu da junção do Dem com o PSL que sempre foi uma sigla vazia, que inchou com a efêmera onda Bolsonaro.
Os partidos mais à esquerda, PSB, PDT, PSOL, PCdoB e Rede, não conseguem ganhar robustez suficiente para permitir ao PT formar uma coalizão progressista e prescindir dos partidos da centro-direita. Some-se a isto que todas as bancadas perderam tamanho.
Dois partidos elegeram entre 60 e 100 deputados, PL e PT. Cinco partidos elegeram entre 40 e 60 deputados. Outros cinco têm entre 10 e 20. Os pequenos são 11, de 1 a 10 deputados. Entres estes, estão os partidos de esquerda, PDT, PSB, PSOL, PCdoB e Rede. O que restou do PSDB tem apenas 13 deputados. Formar blocos adianta pouco, porque a heterogeneidade e a competição entre eles é transportada para os blocos.
Mais centrão e menos centro
Diante da miniaturização partidária, o centrão se beneficia da fragmentação partidária, porque fica com mais espaço de veto. Significa que a coalizão de governo perdeu ainda mais garantias de aprovação de medidas de seu interesse, a partir da distribuição original de ministérios e das emendas que destinam recursos do orçamento.
Só restou a possibilidade de formar coalizões líquidas. Elas só se solidificam se a negociação, caso a caso, é bem sucedida. O apoio dura o tempo da votação de cada projeto.
Isto não quer dizer que Lula não conseguirá aprovar as matérias que sejam mais importantes para o governo. Apenas que terá que negociar mais caso a caso. Terá que fazer concessões ao centrão, cuidando para não deixar o governo descambar para práticas ilegais, que já lhe causaram muitos dissabores.
Além disso, precisa de bons resultados econômicos, para recuperar a popularidade e aumentar seu poder de alavancagem de votos no Congresso. Não pode errar na política econômica.
Coalizões líquidas exigem mais do governo, sob a forma de mais cargos e verbas. Muitos dos grupos nelas representados estão ligados a interesses antagônicos aos do governo, porque são parte daqueles que exercem atividades incompatíveis com os objetivos declarados do governo, ou são por eles financiados.
O centrão está cheio de representantes de grileiros, garimpeiros e madeireiros, por exemplo. Outros, estão ligados a empreiteiras com interesses em hidrelétricas, linhões e rodovias que podem condenar a Amazônia ao colapso ecossistêmico. Em suma, coalizões líquidas representam mais pressão e mais risco para os governos.
A solução é descentralizar o poder
O caminho longo, e na minha opinião necessário, para resolver essa demanda política por cargos e recursos é a descentralização do poder e do dinheiro público.
Uma reforma tributária federativa que descentralize poderes e receitas, dando ao estadual e ao municipal o que eles podem fazer melhor e mantendo na União as políticas estratégicas e de alcance nacional e global. A devolução de poderes eliminaria boa parte da pressão sobre os parlamentares para obter recursos e ações públicas para suas bases. Aqueles de vocação mais local prefeririam buscar cargos nos Legislativos estaduais e municipais.
A descentralização federativa é a única forma de melhorar a qualidade da representação parlamentar e obter coalizões programáticas.
* Sérgio Abranches é sociólogo, cientista político e escritor. É autor de “Presidencialismo de coalizão”.