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Coalizão líquida

As coalizões no Brasil sempre foram móveis. A diferença, agora, é que as coalizões se tornaram ainda mais fluidas e as maiorias mais disformes. O desafio para o governo é maior e a margem de erro menor

Sérgio Abranches, para Headline Ideias
#POLÍTICA5 de abr. de 236 min de leitura
Para recuperar a popularidade e aumentar seu poder de alavancagem de votos no Congresso o governo não pode errar na política econômica. Coalizões líquidas exigem mais do governo, sob a forma de mais cargos e verbas. Foto: Daniel Marenco/HDLN
Sérgio Abranches, para Headline Ideias5 de abr. de 236 min de leitura

Se o sociólogo Zygmunt Bauman tivesse se debruçado sobre a política brasileira, teria encontrado uma das mais claras expressões do líquido. As coalizões brasileiras sempre foram gelatinosas, desde a república de 1946. Explico, são coalizões com baixo comprometimento ideológico ou programático, cujo comprometimento com o governo é condicional e precário.

No Brasil, as coalizões não se estruturam a partir de compromissos firmes entre partidos com programas afins. Elas se organizam como forma de compartilhamento do orçamento hipercentralizado no âmbito federal e do poder de decisão sobre políticas públicas monopolizadas pelo governo da União.

O que se convencionou chamar de base do governo é uma combinação heterogênea de partidos com interesses muito distintos. Ser da base não significa um compromisso firme de votar com o governo, mas apenas a promessa de votar sob determinadas condições, em cada caso.

É claro que, quanto maiores as bancadas de partidos mais próximos nas suas preferências e nos interesses que representam, menos partidos serão necessários para compor uma coalizão de governo majoritária. Mas, se houver necessidade de aprovação de emendas à Constituição, a maioria de 60% implicará na necessidade de ampliar o número de partidos na coalizão. Quanto menor o número de partidos para chegar à maioria necessária, maior a probabilidade de coesão.

Desconstitucionalizar políticas públicas

Este é o problema mais fácil de resolver. O procedimento adotado pelo governo Lula 3, ainda antes da posse, de desconstitucionalizar o arcabouço fiscal, mostrou o caminho. Quanto mais detalhes de políticas públicas forem retiradas da Constituição e transferidas para a legislação ordinária, melhor.

Deixar na Constituição apenas as definições gerais e remeter o desenho das políticas para leis complementares, reduziria dramaticamente a necessidade de coalizões que chamo de “excedentes”, que ultrapassam a maioria absoluta, isto é 50% mais um do total de cadeiras na Câmara e no Senado.

Coalizões de maioria absoluta tendem a permitir a formação de maiorias mais homogêneas e obter maior fidelidade ao governo, do que coalizões excedentes.

Ruptura levou a coalizões líquidas

Volto ao ponto da liquidez das coalizões. As coalizões se tornaram muito líquidas com a ruptura do eixo partidário estruturador de governo e oposição, nas eleições de 2018. Com bancadas mais robustas, os dois partidos “presidenciais”, PT e PSDB, ancoravam as duas coalizões decisivas, a do governo e a da oposição. O PSDB, mesmo perdendo a presidência, era capaz de aglutinar a parte mais consequente da oposição no Legislativo. O mesmo era verdade para o PT, nos governos FHC.

Com a miniaturização do PSDB, que me parece irreversível, o sistema perdeu um dos dois partidos-âncora centrais. Além disso, eles contavam com dois partidos que funcionavam como âncoras auxiliares. O MDB, que fez este papel tanto nos governos do PSDB, quanto nos do PT, até o rompimento no governo Dilma 2. E o PFL, que serviu de âncora auxiliar nos governos FHC. O espaço vazio deixado pelo ocaso do PSDB complica bastante as relações governo-oposição.

Presidente, encolheram os partidos

O MDB perdeu tamanho e, com isto, sua eficácia como âncora auxiliar, diminuiu. O PFL, depois Democratas, sofreu miniaturização fatal, como o PSDB. Hoje é parte menor do União Brasil, que não tem consistência interna suficiente para exercer o papel de âncora-auxiliar. Até porque, nasceu da junção do Dem com o PSL que sempre foi uma sigla vazia, que inchou com a efêmera onda Bolsonaro.

Os partidos mais à esquerda, PSB, PDT, PSOL, PCdoB e Rede, não conseguem ganhar robustez suficiente para permitir ao PT formar uma coalizão progressista e prescindir dos partidos da centro-direita. Some-se a isto que todas as bancadas perderam tamanho.

Dois partidos elegeram entre 60 e 100 deputados, PL e PT. Cinco partidos elegeram entre 40 e 60 deputados. Outros cinco têm entre 10 e 20. Os pequenos são 11, de 1 a 10 deputados. Entres estes, estão os partidos de esquerda, PDT, PSB, PSOL, PCdoB e Rede. O que restou do PSDB tem apenas 13 deputados. Formar blocos adianta pouco, porque a heterogeneidade e a competição entre eles é transportada para os blocos.

Mais centrão e menos centro

Diante da miniaturização partidária, o centrão se beneficia da fragmentação partidária, porque fica com mais espaço de veto. Significa que a coalizão de governo perdeu ainda mais garantias de aprovação de medidas de seu interesse, a partir da distribuição original de ministérios e das emendas que destinam recursos do orçamento.

Só restou a possibilidade de formar coalizões líquidas. Elas só se solidificam se a negociação, caso a caso, é bem sucedida. O apoio dura o tempo da votação de cada projeto.

Isto não quer dizer que Lula não conseguirá aprovar as matérias que sejam mais importantes para o governo. Apenas que terá que negociar mais caso a caso. Terá que fazer concessões ao centrão, cuidando para não deixar o governo descambar para práticas ilegais, que já lhe causaram muitos dissabores.

Além disso, precisa de bons resultados econômicos, para recuperar a popularidade e aumentar seu poder de alavancagem de votos no Congresso. Não pode errar na política econômica.

Coalizões líquidas exigem mais do governo,  sob a forma de mais cargos e verbas. Muitos dos grupos nelas representados estão ligados a interesses antagônicos aos do governo, porque são parte daqueles que exercem atividades incompatíveis com os objetivos declarados do governo, ou são por eles financiados.

Coalizões ao mesmo tempo que viabilizam, oferecem mais pressão e riscos para os governos. Foto: Daniel Marenco/HDLN

O centrão está cheio de representantes de grileiros, garimpeiros e madeireiros, por exemplo. Outros, estão ligados a empreiteiras com interesses em hidrelétricas, linhões e rodovias que podem condenar a Amazônia ao colapso ecossistêmico. Em suma, coalizões líquidas representam mais pressão e mais risco para os governos.

A solução é descentralizar o poder

O caminho longo, e na minha opinião necessário, para resolver essa demanda política por cargos e recursos é a descentralização do poder e do dinheiro público.

Uma reforma tributária federativa que descentralize poderes e receitas, dando ao estadual e ao municipal o que eles podem fazer melhor e mantendo na União as políticas estratégicas e de alcance nacional e global. A devolução de poderes eliminaria boa parte da pressão sobre os parlamentares para obter recursos e ações públicas para suas bases. Aqueles de vocação mais local prefeririam buscar cargos nos Legislativos estaduais e municipais.

A descentralização federativa é a única forma de melhorar a qualidade da representação parlamentar e obter coalizões programáticas.

* Sérgio Abranches é sociólogo, cientista político e escritor. É autor de “Presidencialismo de coalizão”.

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