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Novo arcabouço fiscal e injustiça social

Tudo ainda está no papel. Para virar uma política fiscal responsável e progressista, faltam dois passos essenciais: aprová-la no Congresso sem desfigurá-la, e implementá-la

Sérgio Abranches, para Headline Ideias
#POLÍTICA19 de abr. de 238 min de leitura
Fernando Haddad durante coletiva para explicar os trâmites do arcabouço fiscal, em 18 de abril, em Brasília. Foto: Joédson Alves/Agência Brasil
Sérgio Abranches, para Headline Ideias19 de abr. de 238 min de leitura

O novo arcabouço fiscal finalmente desencantou. A articulação política até sua chegada ao Congresso foi bem feita e conseguiu a adesão ao projeto dos presidentes da Câmara e do Senado e a “boa vontade” da maioria dos líderes. O líder da oposição no Senado fez críticas dizendo querer maior austeridade fiscal. Terá se arrependido e reconvertido à austeridade? No começo do desastrado governo anterior, ajudou Paulo Guedes a negociar a reforma da previdência. Como prêmio, virou ministro e passou a gastador, com direito a embates com o ministro da Economia para obter mais recursos, que o chamou de fura-teto. Foi conivente com a gastança eleitoreira de Bolsonaro, mas agora quer mais aperto.

No Congresso, a proposta foi, em geral, bem aceita. No mercado financeiro, a maioria ideológica ficou contra. Aqueles que dão primazia à técnica sobre as crenças concordam que o arcabouço contém um mecanismo engenhoso que pode estabilizar a relação dívida/PIB e reduzi-la no médio e longo prazo. Mas, dizem, contém metas ambiciosas que requerem não apenas a obediência aos limites de gastos, mas aumento da arrecadação. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse, desde o início, que para zerar o déficit primário no final de 2024 precisará de mais receita e que pretende obtê-la sem aumentar a carga fiscal. Por aumento de carga entenda-se não elevar alíquotas dos impostos existentes, nem criar novos impostos ou taxas.

O aumento de receita deveria vir de duas fontes, a eliminação da sonegação e a revisão das renúncias fiscais, leia-se subsídios. São duas camadas arqueológicas do sistema fiscal brasileiro. Estão lá desde antes do início da Terceira República, de 1988. Parte foi legado da ditadura militar, parte do governo Sarney. Todo governo promete limpar a estrutura tributária dos furos da sonegação. Promessa até hoje não cumprida. Nenhum se comprometeu seriamente a rever os subsídios. É a primeira vez que esta promessa é reiterada por várias autoridades do governo Lula 3, a começar pelo ministro Haddad.

Todos que entenderam o novo arcabouço fiscal sabem que para alcançar suas metas ambiciosas precisará de ganhos de arrecadação. E não há nada errado em buscar mais receita, desde que não seja pela via do aumento da tributação existente que já é alta demais. Principalmente nos impostos indiretos. Sob essas condições, o ganho fiscal só pode vir da limpeza do orçamento de gastos públicos das isenções para os mais ricos e menos eficientes da economia brasileira. Esta é uma discussão fundamentalmente progressista, porque trata da distribuição de renda e da correção do efeito redistributivo muito negativo da ação do Estado na economia. Vale gastar muita saliva, neurônios e energia política no enfrentamento de um dos conflitos distributivos mais duráveis do Brasil. O gasto público inchado por subsídios injustificáveis econômica e socialmente tem feito o Estado brasileiro, inclusive nos governos do PT, distribuir dinheiro público para cima, em proporção muito maior do que distribui para baixo. É este o efeito redistributivo negativo do Estado no Brasil. Ele aumenta a desigualdade.

Limpar o orçamento dessas vantagens indevidas permitiria elevar a receita disponível, atingir as metas do arcabouço fiscal, redistribuindo a renda. Haddad diz que enfrentará essas distorções Quanto mais rápido começar, melhor para a sua política fiscal. Não vai ser fácil. Veremos os dinossauros reaparecerem todos na defesa dos privilégios fósseis nas camadas profundas do orçamento público.

A gritaria contra as “excepcionalidades” não é justa, nem verdadeira. Praticamente todas as despesas que ele retira do cálculo do limite de gasto ou já estavam na Constituição ou em outras leis. Além delas, o projeto faz exceção a gastos com receitas próprias ou de terceiros de origem não-fiscal. É o caso de projetos ambientais e de pesquisa científica e tecnológica financiados a fundo perdido com recursos da filantropia, de governos estrangeiros, de organizações multilaterais e de ONGs, por exemplo. É má vontade oriunda de visão ideológica e não técnica.

A ortodoxia econômica conservadora que se convencionou chamar de neoliberal, não gosto do termo, é ideologicamente contaminada. Essa ortodoxia nada tem de "neo" e quase nada de "liberal". É uma retórica antiestatista que tolera a ação estatal em benefício dos ricos e abomina qualquer gasto ou investimento a favor dos pobres. Mas não é a pregação antiestatista que me incomoda. É o silêncio dos liberais e progressistas sobre o protecionismo a empresas ineficientes e os subsídios aos ricos.

Nunca haverá concordância entre uma proposta progressista e a ortodoxia conservadora. A proposta apresentada por Haddad ao Congresso tem dois componentes progressistas que a diferenciam das políticas de austeridade que encantam o mercado financeiro e aumentam a desigualdade e a destituição. A primeira, está explícita no texto do projeto de lei complementar. Estabelece como princípio de responsabilidade fiscal que despesas recorrentes só podem ser financiadas por receitas recorrentes. O mesmo fundamento da política fiscal adotada pelo presidente Gabriel Boric, do Chile. Despesas permanentes são financiadas por receitas permanentes.

O segundo está implícito na promessa de buscar receita no fechamento de pontos de sonegação e, principalmente, na revisão dos subsídios. É progressista porque reduz o efeito redistributivo negativo da transferência de recursos públicos para os ricos e capitalistas em proporção muito maior do que para os pobres. Pior ainda, a esmagadora maioria dos subsídios ao capital no Brasil beneficia setores ineficientes, de baixa produtividade e danosos ao clima e ao ambiente. Subsídios a empresas da agroindústria que desrespeitam as leis trabalhistas, desmatam, poluem o solo, os rios e os alimentos e emitem quantidades absurdas de gases estufa. Ou ao carvão, ao diesel e à gasolina. Ou a indústrias obsoletas. Tudo em nome de um crescimento que não acontece, ganhos de renda real agregada ilusórios e empregos que não são criados.

Se Haddad conseguir rever pelos menos uma fração desses subsídios e colocar uma porção dos ricos no Orçamento, será o primeiro ministro a implementar uma política progressista de responsabilidade fiscal que permite corrigir injustiças sociais. Curiosamente, em um governo de frente ampla.

Articulação política

O arcabouço contém punição automática para o descumprimento da meta. Se o governo não alcançar a meta proposta, o limite de gasto fica mais restritivo. Contém, também, um mecanismo reputacional similar ao adotado na política de metas de inflação adotada pelo Banco Central. Em caso de descumprimento, o presidente da República fica obrigado a explicar em mensagem ao Congresso as razões pelas quais não ficou dentro da meta que ele mesmo propôs.

Por enquanto, está tudo no papel. Para virar uma política fiscal responsável e progressista, faltam dois passos essenciais. Aprová-la no Congresso sem que seja desfigurada e implementá-la para valer. A aprovação é bastante provável. A articulação foi bem feita. Primeiro, Lula e Haddad explicaram o projeto aos presidentes da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco. Depois, discutiram o projeto com os líderes dos partidos em ambas as casas. Mas, fizeram mais do que isto. Estão nitidamente compartilhando os bônus por sua aprovação com os presidentes das duas Casas do Legislativo.

Na apresentação do projeto ao Congresso, o primeiro a falar foi o presidente da Câmara e mostrou-se empenhado em aprovar o projeto formulado pelo governo, em 20 dias. Lira, espertamente, disse que a discussão será ampla, de responsabilidade dos líderes e que ele não terá protagonismo nessa tramitação. Mas, fez duas afirmações que indicam sua disposição de trabalhar pela aprovação em regime de urgência. Primeiro, o prazo curto. Segundo, a ideia de que em lugar dos 257 votos necessários para aprovação de projeto de lei complementar, buscará os 308 votos necessários para aprovação de uma emenda à Constituição. Aprová-lo com os votos de uma PEC lhe dariam mais legitimidade e mais força. Lira separou o arcabouço e a reforma fiscal como “questões de estado” da tramitação de propostas do governo. As questões de estado serão tratadas com prioridade e por cima das fronteiras partidárias. O que significa que a maioria dos deputados do PL e de outros partidos que não fazem parte da coalizão do governo deve votar a favor. Lira disse ainda que as dificuldades do governo com sua “base”, leia-se coalizão governista, não serão problema para aprovação deste projeto.

Lula participa de reunião, no Palácio do Planalto, em Brasília, em 18 de abril de 2023. Foto: Evaristo Sá/AFP
Lula participa de reunião, no Palácio do Planalto, em Brasília, em 18 de abril de 2023. Foto: Evaristo Sá/AFP

Como escrevi aqui, não há alternativa para Lula a lidar com uma coalizão líquida. Terá sempre que negociar uma maioria caso a caso. É uma limitação estrutural da atual fisionomia da fragmentação partidária no Congresso e da miniaturização das bancadas partidárias. Não há como formar uma coalizão coesa, enxuta e firme para apoiar todos os projetos do governo. Como a coalizão é líquida, a base também é líquida, não dá para se apoiar nela.

A articulação do arcabouço, por fora dessa base movediça foi correta e mostrou uma leitura adequada da realidade parlamentar. Uma leitura, diga-se, feita com o auxílio de Lira.

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