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Negociação fora do padrão aprova urgência do novo regime fiscal

O padrão de relação entre Legislativo e Executivo mudou com aprovação do regime de urgência para o projeto do novo regime fiscal. Mas ele não valerá para todas as votações de interesse do governo

Sérgio Abranches, para Headline Ideias
#ECONOMIA17 de mai. de 239 min de leitura
O Ministro da Economia, Fernando Haddad, durante audiência pública conjunta das comissões de Desenvolvimento Econômico; Finanças e Tributação; Fiscalização Financeira e Controle, na Câmara dos Deputados, em Brasília. Foto: Lula Marques/Agência Brasil.
Sérgio Abranches, para Headline Ideias17 de mai. de 239 min de leitura

A aprovação de urgência para o projeto de lei complementar do novo regime fiscal mostrou uma via de negociação política ajustada à nova correlação institucional de forças entre Executivo e Legislativo. Um governo sem coalizão majoritária, o presidente da Câmara com muito poder e um ministro da Fazenda com capacidade política. O regime fiscal foi adotado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, como um projeto "institucional" ou, segundo ele, de Estado e não de governo. Não por acaso, a maior parte das negociações ocorreu na casa oficial do presidente da Câmara.

A negociação buscava uma terceira via, entre a visão superfiscalista da direita neoliberal e a visão antifiscalista tradicional do PT. São ambas visões ultrapassadas. A austeridade a qualquer custo, hegemônica por mais de uma década, imposta a ferro e fogo pelo mercado financeiro, pelo FMI, pelo Conselho Europeu e pelos bancos centrais, foi superada pela pandemia. A austeridade debilitou os sistemas públicos de saúde, aumentou o piso de desemprego, agravando as consequências da paralização de emergência, e enfraqueceu a rede de proteção social. No campo da esquerda, a visão antifiscalista foi substituída por uma política de gestão fiscal responsável compatível com os gastos prioritários de natureza redistributiva. Grandes déficits públicos levaram a altas taxas de inflação e consequente elevação da taxa básica de juros. O aumento da dívida pública provocou a perda de capacidade de atrair investimentos. O quadro social piorou.

Além da austeridade

As restrições fiscais neste estágio da mudança global em que nos encontramos são verdadeiras e insuperáveis. Há que respeitar seus limites. A base de arrecadação de tributos está se reduzindo. A digitalização reduz o escopo da tributação. A única fonte de financiamento do investimento é o mercado financeiro globalizado. Níveis de endividamento que apontem para o risco de inadimplência reduzem a capacidade de financiamento do investimento e do gasto públicos. Mas não existe uma fórmula única para atender a estas restrições fiscais e parte importante da luta política de nossos dias é sobre como fazê-lo. Há alternativa tanto para o superfiscalismo da direita neoliberal, quanto para o gasto deficitário da esquerda tradicional.

A pandemia mostrou que a austeridade fiscal indiscriminada debilitou os sistemas de saúde pública e reduziu sua eficácia para enfrentar a emergência. Além disso, a crise econômica resultante do lockdown durante a fase mais severa da pandemia gerou a necessidade de ampliação do gasto público para promover políticas anticíclicas. A direita substituiu a austeridade por desenhos alternativos de regime fiscal mais flexíveis, para admitir políticas anticíclicas em momentos de crise e para preservar gastos em áreas por ela consideradas prioritárias. É o que estão fazendo governos de direita de vários países europeus. À esquerda, um bom exemplo é o da Geringonça, a coalizão de esquerda portuguesa, que subiu com a rejeição popular às consequências sociais da austeridade. Conseguiu reduzir o déficit sem comprometer o desempenho econômico, recuperando o emprego e o gasto social. Mostrou a compatibilidade entre o equilíbrio fiscal, a estabilidade da dívida pública em patamares compatíveis com a capacidade de rolagem e pagamento do país e políticas sociais e redistributivas que elevam o bem-estar das camadas mais desprotegidas da população.

As modificações ao projeto de lei complementar do regime fiscal negociadas por Fernando Haddad com os parlamentares apenas incluem salvaguardas muito razoáveis em caso de descumprimento das metas fiscais. Faltavam ao projeto essas garantias ou condicionalidades que, além de fazerem sentido, contribuem para aumentar a sua credibilidade. O relator também eliminou quase todas as exceções ao teto de gasto, deixando fora apenas a valorização do salário mínimo. O regime fiscal de Haddad tem boas chances de se somar à política da Geringonça como exemplo de política fiscal progressista responsável.

Os economistas da direita superfiscalista parecem olhar para o mundo por meio de um óculos de realidade virtual distinta da realidade vivida. Vêem colapso econômico por toda parte sempre que haja algum aumento de gasto, mesmo que justificado por necessidades urgentes. Os óculos parecem filtrar ou encolher os problemas sociais como a pobreza estrutural, o desemprego, o sucateamento sistema de atendimento à saúde e o empobrecimento da dieta alimentar. O desemprego, hoje, tem duas fontes principais. Uma estrutural, associada à automação e uso de aprendizado de máquina e inteligência artificial em todos os setores da produção. Outra, conjuntural, associada aos ciclos econômicos. Será necessário gastar mais com a rede de proteção social.

No Brasil, boa parte do PT e praticamente todo o PSOL seguem com uma visão antifiscalista historicamente superada. É possível combinar a restrição ao crescimento excessivo do gasto público e o objetivo redistributivo do governo. O regime fiscal desenhado pela equipe de Haddad permite ao governo implementar políticas sociais e redistributivas, recompor o orçamento do SUS, ter uma política de valorização real do salário mínimo, mantendo a responsabilidade fiscal. Fazem oposição partidos como o PSOL, a Rede e parte do PT por manterem esta visão superada. Eles não conseguem ver as restrições fiscais reais que existem globalmente, nem discriminar o mau gasto do bom. Além disso, insistem em objetivos de gastos superados e não incorporaram as novas necessidades de gasto social.

Articulação alternativa

A correlação de forças entre Executivo e Legislativo mudou. Aumentaram os pontos de veto, muitos deles no chamado centrão. Mudaram as preferências dos parlamentares, mais interessados em verbas do que em cargos. Mas, como o povo já aprendeu a correlacionar gastança pública com inflação, a maioria dos parlamentares quer um regime de controle fiscal relativamente rígido. Pode não ser coerente com a fome por emendas parlamentares distribuindo verbas públicas para seus redutos eleitorais, mas é o modo pelo qual a política busca forçar os limites das possibilidades. O Executivo perdeu força na relação com o Legislativo e a articulação política precisou se ajustar à nova realidade.

Os ganhos de força no Legislativo ampliaram o poder dos presidentes das duas Casas do Congresso. Com o aumento do poder, vem mais responsabilidade política. O presidente da Câmara, Arthur Lira, percebeu que certas derrotas do governo na Câmara podem prejudicá-lo e outras derrotas o ajudam a manter o governo no córner. Em ambos os casos, ele busca ganhar poder. Uma derrota no PLC do Regime Fiscal seria desastrosa para o governo e lesiva para Lira. É o que explica a articulação cooperativa que ele e Haddad empreenderam.

Fernando Haddad pisava em cristais. Sua proposta fiscal sofria oposição no PT e dentro do próprio governo. O presidente Lula esperava que ele fizesse a persuasão desses "aliados antagônicos", para dar a palavra final. Haddad procedeu com cuidado e paciência. Incorporou o Planejamento, de Simone Tebet, no desenvolvimento da proposta conquistando seu apoio. Apresentou seu desenho fiscal ao vice Geraldo Alckmin, mais propenso a apoiá-lo e só então o levou a Lula. Haddad tinha oposição dentro do governo e esta oposição chegava aos ouvidos de Lula. O presidente recomendou que conversasse com os líderes no Congresso.

Haddad, antes de ir aos líderes, apresentou o esboço do regime fiscal aos presidente da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco. Lira, por sua vez, recomendou que Haddad apresentasse aos líderes no Congresso. Apresentações feitas e com os ajustes decorrentes, o projeto seguiu para a Câmara. Arthur Lira escolheu um parlamentar de sua estrita confiança para relator do projeto, Claudio Cajado (PP-BA). Cajado negociou seu substitutivo todo o tempo com Haddad e com as lideranças partidárias. As negociações finais desta etapa que permitiu a chegada do projeto ao plenário se deram no gabinete de Lula, para "o nada contra". Mas, as negociações decisivas que levaram, inclusive, a novos ajustes no texto, foram na casa oficial do presidente da Câmara. O texto do substitutivo mantém o espírito da proposta Haddad endurecida por restrições adicionais e crescentes em caso de descumprimento. Não foi surpresa para Haddad, não mudou o espírito do projeto, nem contou com sua oposição.

Painel retrata cooperação Lira/Lula/Haddad, não a coalizão do governo

Com sua presença ostensiva e liderança, Lira se tornou praticamente coautor do projeto. Ao final, foi uma construção política cooperativa entre ele e Haddad, com a participação ativa do deputado Cajado. Para ser corresponsável pelo novo regime fiscal, Lira precisava promover a separação das políticas públicas entre aquelas que considera de Estado e as de governo. As de Estado correm sob sua liderança, as de governo, correm por conta própria, sob responsabilidade de Lula e suas lideranças no Congresso.

Para deixar claramente demarcada esta diferença, Lira elevou o sarrafo para votação do regime fiscal. Queria maioria de emenda constitucional, de 308 votos, em lugar dos 257 necessários para aprovar projeto de lei complementar. Conseguiu 367 votos, contra apenas 102. Na semana que vem, ele será votado. Por acordo não haverá emendas ou entram apenas aquelas de consenso. O acordo fechado entre Lira e o governo é que, se o projeto for aprovado como negociado, Lula não vetará nenhum artigo.

O Ministro da Economia, Fernando Haddad, durante audiência pública conjunta das comissões de Desenvolvimento Econômico; Finanças e Tributação; Fiscalização Financeira e Controle, na Câmara dos Deputados, em Brasília. Foto: Lula Marques/Agência Brasil.
Haddad articulou pessoalmente com Lira e líderes partidários o projeto sobre o novo regime fiscal. Foto: Lula Marques/Agência Brasil.

O painel eletrônico da Câmara dos Deputados virou uma caixa de surpresas. É ele, hoje, que dá a medida do humor da Casa, em cada votação. O expressivo resultado obtido pelo pedido de urgência para o projeto de lei complementar que institui o novo regime fiscal mostra que o projeto transcendeu o governo. Ele se tornou uma criatura de Haddad, Lira e Cajado. Uma caracterização que dá bem a configuração da correlação de forças políticas hoje no Brasil.

A votação da urgência para o PLC do novo regime fiscal não serve como marcador da força do governo na Câmara. Parte nada desprezível dos votos favoráveis registrados no painel eletrônico se devem à atuação do presidente da Câmara, Arthur Lira. Uma parte também considerável se deveu à habilidade com que Haddad se movimentou no campo político e à sua atitude de portas abertas aos parlamentares. Não deve haver nenhum espanto. Ministro é cargo político, portanto nada há de extraordinário em alguém no exercício do cargo, mesmo em um ministério considerado "técnico", faça política. Esta forma de articulação combinada e cooperativa entre governo e presidência da Câmara não se repetirá em todos os projetos de interesse do governo. Valerá apenas para aquelas medidas que Arthur Lira considere transcender o campo governamental. O que é de governo e o que é de Estado é uma classificação política e monocrática do presidente da Câmara.

* Sérgio Abranches é sociólogo, cientista político e escritor. É autor de “Presidencialismo de coalizão”. 

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