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#SUBVERSÃO POLÍTICA

Violência política é orquestrada para desestabilizar

O que aconteceu em Brasília parece uma ação anárquica que se esgota na depredação dos prédios. Parece, mas não é. Os ataques têm objetivos institucionais claros

Sérgio Abranches, para Headline Ideias
#SUBVERSÃO POLÍTICA9 de jan. de 2310 min de leitura
Pintura que retrata o senador Renan Calheiros vandalizada pelos terroristas que invadiram o Congresso Nacional. Foto: Carl de Souza/AFP
Sérgio Abranches, para Headline Ideias9 de jan. de 2310 min de leitura

A invasão dos prédios dos Três Poderes em Brasília parece uma ação anárquica que se esgota na ocupação temporária e depredação dos prédios. Parece pura anarquia. Pode parecer mas não é nenhuma das duas coisas. Ações de violência política como essas são orquestradas. Buscam desestabilizar politicamente o país, criando um ambiente de desordem civil que termine por justificar a intervenção militar para repor a ordem.

A atitude do Exército em tolerar que centenas de pessoas acampassem nas portas dos quartéis, com objetivos declaradamente golpistas, contribui para encorajá-las. O entorno dos quartéis é legalmente área militar. A tolerância revelada pelos militares é inédita e levanta a suspeita de que haja concordância da cúpula militar se não com os objetivos golpistas, no mínimo com suas motivações. O ministro da Defesa mostrou-se caudatário dos militares, incapaz de exercer autoridade e influência sobre suas decisões neste campo que é político.

Violência política

A violência política tem objetivos institucionais claros e não precisa ser física, para se caracterizar como ação violenta extrema. Essa prática agressiva se manifesta também em manifestações com chamados ao uso da força, palavras de ordem extremistas e ameaçadoras, ofensas e ameaças de morte a políticos e autoridades dos quais discordam. Constituem violência política as ações de assédio e ofensa a pessoas identificadas como inimigas. Na escalada, a violência recorre a ameaças terroristas com bombas em locais públicos, ocupações e depredações de prédios públicos.

Essas formas de violência política têm sido usadas como ferramenta da extrema direita em todo o mundo. Não são novidade. Foram usadas por Hitler para desestabilizar a República de Weimar e assumir o governo com plenos poderes autocráticos, cedidos pelo Parlamento. Elas seguem um padrão: manifestações sincronizadas em vários pontos do país, de protesto contra aqueles que estão no poder, com violência contra transeuntes e jornalistas. Assédio em eventos a pessoas que defendem ideias opostas com agressões verbais, morais e intimidação física. Assédios similares dirigidos a opositores e à imprensa nos meios de transporte, ônibus, metrô e aviões. Ocupação e depredação de prédios governamentais.

Outra tática comum é a exibição de armas por civis, que aponta a possibilidade de formação de milícias golpistas. É preciso ter claro que o objetivo imediato não é tomar o poder, é desestabilizar politicamente as intituições, criar um clima de tensão. O golpe é uma etapa imaginada para o ápice da onda de ações de desestabilização, caracterizando um quadro de desordem civil sem controle efetivo. Daí a importância da omissão, do retardo, do imobilismo de autoridades de segurança.

Essa sequência de atos de desestabilização política violenta é planejada, articulada nas mídias digitais, às vezes publicamente. Foi o caso dos episódios de Brasília, anunciados há dias nas redes ligadas a Jair Bolsonaro, que chegaram inclusive a pessoas estranhas às redes bolsonaristas. Esses atos seguem manuais de operação, doutrina, palavras-chave que unificam o discurso e promovem a unidade. São ações organizadas que contam com financiamento vultoso. Sua liderança superior é camuflada. Os principais líderes no topo da hierarquia política do movimento não emitem ordens diretas e ostensivas. Suas mensagens motivam e justificam a beligerância e o levante, para manter as insatisfações acesas e a turba mobilizada e crispada. As lideranças nas manifestações de rua, nas invasões, são mais espontâneas, embora em quase todos os casos investigados tenham sido identificadas lideranças preparadas politicamente e infiltradas para orientar esses condutores na rua.

Imprevidência, omissão e conivência

Houve imprevidência e conivente leniência das autoridades de segurança dos estados, especialmente do governo do Distrito Federal, e dos militares. A resposta daqueles que tinham o dever constitucional de agir preventivamente e, em caso de irrupção imprevista da violência, responder primeiro (são os "first responders" da literatura em inglês). No caso da invasão dos Três Poderes em Brasília, tanto a prevenção, quanto a primeira resposta, eram obrigação do governo do Distrito Federal. A inação que se viu é razão mais do que suficiente para a intervenção federal e para o afastamento do governador Ibaneis Rocha e abertura imediata de inquérito para verificar o grau de responsabilidade. Do que já se sabe, é razão suficiente para a Camara Distrital votar seu impeachment.

No governo federal, o principal problema hoje é a falta de autoridade do ministro da Defesa sobre as corporações militares. O ministro José Múcio não mostrou nem mesmo capacidade de convencimento dos chefes militares. Os acampamentos que deveriam ter sido desmontados logo no início do novo governo, não o foram, em boa medida, pela resistência da cúpula militar em fazer valer as normas de segurança no entorno dos quartéis. Só após a violência extrema e destruição dos prédios do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, eles estão sendo desmontados pela política militar do DF sob intervenção federal.

Era evidente que os acampamentos serviam como centros de aglutinação golpista, ou "incubadoras de terroristas", como os definiu o ministro da Justiça Flávio Dino. Ele já defendia sua desmobilização em resposta aos episódios de violência do dia 12 de dezembro passado, data da diplomação de Lula e Alckmin como presidente e vice-presidente da República. Neste dia, houve tentativa de explodir uma bomba no aeroporto de Brasília e de invasão da sede da Polícia Federal, atos precursores dos de 8 de janeiro.

A democracia precisa se defender

Para dissipar esse ambiente de instabilidade e violência, em desrespeito flagrante à Constituição e às leis, é indispensável impor a autoridade estatal. A demora em agir contra os acampamentos golpistas e a pregação da violência, ainda que velada, por "influenciadores" e políticos da extrema direita, ajudou a manter o clima propício à eclosão da violência. É fundamental, também, neutralizar as vozes que estimulam e encorajam ações violentas e que oferecem razões e justificativas para o recurso à violência política como ferramenta para obter ganhos políticos.

Entre as lideranças alinhadas a Bolsonaro, como o senador Ciro Nogueira, o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, entre outros, o que se vê é uma atitude de cinismo político, um desregramento concreto encapado em um discurso supostamente legalista. O ministro Alexandre de Moraes tem razão em dizer que há uma organização criminosa por trás desses atos. Eles são ostensivamente excitados por palavras de ordem, são fartamente financiados e, evidentemente, estão fazendo o que fazem em conexão com as ameaças, acusações e suspeitas contra o sistema político-eleitoral por Bolsonaro e outras lideranças políticas a ele ligadas. Os autores intelectuais do golpismo e da violência política, camuflados pelo cinismo político, precisam ser interpelados por seus pares e pela justiça. Bolsonaro é o ícone do cinismo político e da mentira política reiterada.

As autoridades que manifestaram conivente complacência, inação e omissão precisam ser responsabilizadas. É evidente o imobilismo do Procurador Geral da República. Há indícios e reclamações de intimidação de membros do Ministério Público que se insurgem contra a inatividade do PGR, uma das autoridades às quais a Constituição confere a prerrogativa de agir de ofício, isto é, por iniciativa própria justificada. Razões abundam para a intervenção preventiva e processual do PGR. O que não há é justificativa para o seu silêncio. O silêncio funcional do Procurador Geral da República, Augusto Aras, deveria ser objeto de escrutínio por parte Conselho Nacional do Ministério Público.

A democracia precisa se defender porque sua natureza impõe que seja um regime aberto, de liberdades amplas e plenas, portanto que se expõe à ação de adversários. Há um limite a partir do qual justifica-se a ação repressiva do estado em defesa da democracia. Esses atos de violência política extrapolam em muito os limites de tolerância assegurados pelos direitos civis e políticos. Não estão incluídos no generoso escopo das liberdades de expressão e de reunião. As atividades preventivas de segurança são indispensáveis para evitar novos atos de agressão política em todo o espectro de atos descrito acima.

O cinismo político não está capitulado entre os crimes de responsabilidade. Mas, sob a capa de cinismo e mentira, é possível encontrar atos e palavras que mostram a responsabilidade intelectual pela violência política. Um exame das lives e stand ups de Bolsonaro, quando ainda na presidência, mostrará diversas instâncias de seu discurso de motivação e justificação do golpismo. Não há como dissociar Bolsonaro dos acampamentos e das ações de violência política.

Foi um erro político o acordo para que os golpistas, que já haviam cometido atos ilegais e de violência política, ficassem nos acampamentos. No caso das ações de ontem, havia acordo de que os manifestantes não teriam permissão para chegar à Praça dos Três Poderes. O governador Ibaneis Rocha, do DF, rompeu o acordo em cima da hora, sem consulta às autoridades federais com as quais estava em contato. Ao permitir o avanço da turba golpista sobre a Praça dos Três Poderes, ele se tornou responsável pelo que se seguiu, no mínimo por negligência culposa, e por isso sua participação deve ser investigada. O governador cometeu evidente crime de responsabilidade que é razão suficiente para seu impedimento. É preciso investigar sua responsabilidade criminal.

Apoiadores do ex-presidente de extrema-direita do Brasil, Jair Bolsonaro, sob custódia, são levados em ônibus pelas forças policiais para a sede da Polícia Federal para ter suas identidades e registros criminais verificados quanto à possível implicação em atos de vandalismo durante as invasões ao Congresso, Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal, em Brasília, em 9 de janeiro de 2023, um dia após os atos de vandalismo. Foto: Mauro Pimentel/AFP
Apoiadores de Jair Bolsonaro são levados em ônibus pelas forças policiais para a sede da Polícia Federal para ter suas identidades e registros criminais verificados quanto à possível participação no ataque terrorista aos prédios da praça dos Três Poderes em Brasília. Foto: Mauro Pimentel/AFP

Uma das defesas de democracia é que nenhuma autoridade investida de poder constitucional é imune à fiscalização e punição por prevaricação, corrupção e outros crimes. Todos podem e devem ser responsabilizados por suas ações ou inações, antes, durante e depois dos atos de violência política em Brasília.

A questão militar

O ponto vulnerável de mais difícil correção é a posição dos oficiais superiores das Forças Armadas. A tolerância com os acampamentos abertamente golpistas no entorno de quartéis, zona de segurança militar, das quais sempre foram muito ciosos, deve ser objeto de preocupação. A cautela civil no trato com os militares atesta a fragilidade da contenção constitucional de sua ação. Não há garantia nem evidência de que esteja em curso a necessária despolitização dos militares. Enquanto esta persistir, o artigo 142 da Constituição ficará como uma espada de Damocles a ameaçar a democracia brasileira.

Os golpistas esperam que com a desordem civil, os militares se convençam a agir de acordo com o artigo 142. Já ouvi isso de bolsonaristas ligados à Polícia Militar do Rio de Janeiro, na campanha eleitoral. O ponto-chave do artigo é que considera como parte da "destinação" das Forças Armadas "a garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem". Em algum momento a democracia brasileira, para manter sua integridade, terá que eliminar esta parte que dá aos militares a faculdade de agir em defesa da lei e da ordem. No Estado democrático de direito íntegro, a garantia dos poderes da República e a manutenção da lei e da ordem devem ser monopólio das autoridades civis do Executivo e do Judiciário.

* Sérgio Abranches é sociólogo, cientista político e escritor. É autor de “Presidencialismo de coalizão”.

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