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Um pensador da formação do Brasil

José Murilo de Carvalho dedicou-se a analisar a formação da sociedade e do estado no Brasil, da perspectiva das elites e da cidadania. Tornou-se leitura obrigatória para quem quer entender o país

Sérgio Abranches, para Headline Ideias
#OBITUÁRIO14 de ago. de 235 min de leitura
O historiador José Murilo de Carvalho, que ocupava a cadeira número 5 da Academia Brasileira de Letras (ABL) , morreu na madrugada deste domingo (13), aos 83 anos. Foto: Arquivo ABL
Sérgio Abranches, para Headline Ideias14 de ago. de 235 min de leitura

Conheci José Murilo de Carvalho quando eu era ainda estudante entre o fim da graduação e o primeiro ano do mestrado. Anos depois, ficamos amigos e convivemos por três décadas como professores na mesma instituição. Foi um período de troca intensa de ideias e projetos. Sempre tive a noção de que era troca desigual, ele me ajudava mais do que eu a ele. Certa vez, em um evento da Academia Brasileira de Letras, relembrei seu artigo sobre a política de Barbacena, cidade de meu pai, que me levou a querer conhecê-lo pessoalmente. Ele fez aquele sorriso irônico que era parte indissociável de sua personalidade e disse que era um produto da juventude.

Nossa covivência diminuiu de intensidade depois que ambos deixamos o IUPERJ. Mas continuamos a conversar, por e-mail e pessoalmente, e nos encontrávamos socialmente e em eventos. Quando o embaixador Rubens Ricupero me convidou para escrever um artigo para o volume que preparava em comemoração ao bicentenário da Independência, pensei logo que só o remeteria se o Zé Murilo o lesse e aprovasse. Não podia escrever sobre o momento constituinte do estado nacional brasileiro sem passar por sua leitura crítica. Enviei-lhe o artigo e ele voltou cheio de críticas. Reescrevi, considerando suas observações, e ele disse que estava bem. Dias depois, me convidou para compartilhar com ele uma mesa na ABL sobre o tema. Zé Murilo disse que havíamos seguido pela mesma trilha. Achei graça, pois foi ele quem abriu a trilha. Foi a partir do artigo por ele criticado que escrevi um ensaio sobre os momentos constituintes do Brasil, em busca das pulsões autoritárias e democráticas. Pena que o Zé não poderá criticá-lo.

Zé Murilo era irônico, afável, divertido e, como intelectual, meticuloso, preciso e brilhante. Quando pesquisava sobre a República no Brasil, o Zé desapareceu. Eu ia à sua sala para conversarmos e ele não estava. Quando reapareceu e lhe perguntei por onde andava, ele disse que estivera visitando os pontos do Rio onde ocorreram as principais manifestações pela república. Queria ter uma ideia de quanta gente comportariam. Dessa pesquisa e de suas andanças pelos pontos históricos do Rio de Janeiro saiu "Os bestializados", leitura obrigatória para quem quiser entender o Brasil de ontem e de hoje.

Zé Murilo refletiu tanto e com tanta qualidade sobre a formação do estado-nação brasileiro, em seus dois momentos constituintes cruciais, o Império e a República, que passou a ser considerado um historiador referencial. Mas ele se considerava mesmo uma mistura de sociólogo e cientista político com um viés para a história. Era uma de nossas afinidades. Também sou um híbrido de sociólogo e politólogo. A diferença é que não me debrucei sobre a história da forma sistemática com que ele o fez. O Zé mergulhava fundo na história para dela retirar uma visão dos fundamentos de nossa formação que podem ser projetados sobre o presente e esclarecer seus limites e possibilidades. Dos seus trabalhos se podia, com muita base histórica e analítica, imaginar caminhos futuros possíveis. Foi dessa visão sociológica e política que ele examinou o papel das elites e os limites da cidadania no Brasil.

Eu tive o privilégio de ser par de intelectuais da geração 10 anos mais velha que a minha. Nessa convivência, dois desses amigos de muitas conversas intelectuais tiveram peso no amadurecimento de minhas ideias e na discussão dos temas mais relevantes a que me dediquei ao longo de minha carreira. Foram eles Wanderley Guilherme dos Santos e José Murilo de Carvalho. Wanderley era 14 anos mais velho que eu e Zé Murilo, 10 anos.

Os acadêmicos José Murilo de Carvalho (E) e Domício Proença Filho recebem a presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, na abertura do seminário Brasil, brasis, na Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro, em 05 de maio de 2017. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Os acadêmicos José Murilo de Carvalho (E) e Domício Proença Filho recebem a presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, na abertura do seminário Brasil, brasis, na Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro, em 05 de maio de 2017. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Um dos momentos inesquecíveis de nossa convivência foi um viagem que fizemos pelas cidades históricas de Minas. Wanderley sempre tinha o melhor carro entre nós e não gostava de dirigir nas rodovias. Pedia que eu dirigisse. Aproveitamos uma reunião da ANPOCS para visitar Sabará, Ouro Preto, Mariana, Tiradentes e São João del Rey. O Zé deu uma aula, com detalhes riquíssimos de cada rua, cada prédio que visitamos. Fora as tiradas de bom humor tanto dele, quanto do Wanderley. Foi uma dessas viagens encantadas. Desde então, toda vez que chego a uma dessas cidades, penso nos dois e, não raro, começo a rir sozinho, lembrando alguma nas inúmeras situações divertidas.

Ambos se foram. Wanderley nos deixou em 2019. No domingo, 13, o Zé Murilo partiu. Tivemos trocas intensas, de idas e vindas, e não foram só intelectuais, foram afetivas também. Foram momentos ricos e divertidos.

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