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Um olhar para depois da tragédia climática

Mau uso do solo urbano, desmatamento e ocupação de encostas são as verdadeiras causas dos desastres. A boa notícia é que o governo quer pensar o futuro além da emergência

Sérgio Abranches, para Headline Ideias
#CIDADES22 de fev. de 239 min de leitura
Vista aérea mostra equipes de resgate no caminho de destruição deixado por um deslizamento de terra após chuva torrencial no distrito de Barra do Sahy, em São Sebastião, em São Paulo, em 21 de fevereiro. Foto: Fernando Marrón/AFP
Sérgio Abranches, para Headline Ideias22 de fev. de 239 min de leitura

Não vou escrever sobre o carnaval. Só dizer que este foi o nosso carnaval da liberdade, com o país tendo superado a fase aguda da pandemia e se livrado do pesadelo obscurantista dos últimos quatro anos. Mas não falarei da minha Mangueira a desfilar suas Áfricas soberanas na Sapucaí. "Eparrey Oyá! Eparrey Mainha! Quando o verde encontra o rosa toda preta é rainha." Disse tudo. Meu olhar está em São Sebastião, Bertioga, Ilhabela, Ubatuba e Caraguatatuba, no povo pobre do litoral dos ricos, atingido duramente por um evento climático extremo. Não foi um desastre natural. Foi um desastre social. O encontro entre um evento extremo da natureza com uma sociedade despreparada e displicente.

Não foi como costumava ser. Houve uma mudança essencial. Lula e seus ministros se deslocaram para o litoral de São Paulo e pensam não só na emergência, mas no futuro. Marina Silva, ministra do Meio Ambiente, procurava um voo para ir do Acre para São Paulo e pensava em ações mais duráveis. Na véspera do réveillon de 2021, o Brasil ainda vivia a imensa tragédia da pandemia e o governo federal só atrapalhava, não trabalhava. Um temporal atingiu a Bahia, matando 21 pessoas e desalojando 31 mil, em Ilhéus, Itabuna e outras 70 cidades. Bolsonaro andava de jetski em Santa Catarina. Lá permaneceu, alheio à tragédia. Só falou de sua esperança de que o evento não o fizesse voltar antes de seu feriado terminar. Como se ele não tivesse vivido seus quatro anos como um recreio interrompido por alguns incômodos.

O que chamamos de desastres naturais são tragédias humanas causadas pelo manejo errado da natureza. Estamos diante de uma ameaça existencial. As tragédias se sucedem em todo o mundo, em frequência crescente. Secas e queimadas gigantescas, ondas mortais de calor, nevascas recorde, temporais, furacões de níveis 4 e 5 se repetem mundo afora. Califórnia, Grécia, Espanha, Portugal, estado de Nova York, Bahia, São Paulo, Minas Gerais, não importa o grau de desenvolvimento ou o nível de renda, há pontos vulneráveis em todos os lugares. São a evidência indisputável de que estamos sendo negligentes com os alertas, também cada vez mais dramáticos, da ciência. Buscamos o apocalipse, dominados por nossos interesses econômicos e geopolíticos de curto prazo. Estamos a escrever o enredo de nossa própria distopia.

Desde a Rio 92, sabemos dos riscos associados à mudança climática e o que fazer para evitar seu agravamento e aumentar nossa capacidade de lidar com suas consequências já inevitáveis. Essa dupla ganhou nome oficial: mitigação, ou seja, redução da emissão dos gases de efeito estufa; e adaptação, mudar o nosso ambiente construído para resistir melhor aos efeitos dos eventos extremos e ajudar na mitigação.

Ao ver os estragos no litoral de São Paulo, não consegui afastar a associação visual com áreas atingidas por furacões e tornados. Essas imagens se tornaram rotina na imprensa global. Em setembro passado, um furacão devastou o Sul da Flórida e o oeste de Cuba, entre outras regiões do Caribe. Foi o sexto de categoria 4 ou 5 a atingir a costa americana em cinco anos. No mesmo setembro de 22, um tufão categoria 5 atingiu com severidade a Coreia do Sul, a China, Taiwan e o Japão. De 2017 para cá, a Califórnia foi atingida por grandes incêndios florestais, causando enorme destruição e muitas mortes. No verão de 22, incêndios florestais queimaram 508.260 hectares na Europa Ocidental.

Descontada a pandemia, outro efeito de nosso descuidado avanço sobre a natureza, foram muito numerosas as tragédias causadas pela incidência de eventos climáticos intensos ou extremos em ambientes socialmente vulneráveis. Um temporal com precipitação de 600mm-700mm, como ocorreu no litoral paulista, em poucas horas, é um evento extremo como são um furacão ou um tufão. Chuvas torrenciais com precipitações entre 100mm e 500mm são eventos intensos também devastadores. Porém, mesmo chuvas com precipitação inferior a 100mm podem ser destrutivas em áreas de alto risco.

Nós nos chocamos, entristecemos e mobilizamos para ajudar as vítimas desses desastres. Está virando quase uma rotina de solidariedade, porque esses eventos se tornaram mais frequentes e violentos. A mudança climática vai chegando a nós, a cada ciclo com mais força. Não estamos fazendo o dever de casa.

A boa notícia, em meio a toda o drama que se desenrola no litoral de São Paulo, é que rapidamente reuniram-se peças chaves do governo e do Estado brasileiro, para olhar para as emergências com os olhos postos na prevenção futura de novas tragédias sociais associadas à mudança climática que já está acontecendo. Mudança climática não é apenas uma ameaça no horizonte tormentoso da humanidade. É um processo que já se manifesta na frequência que se amplia de eventos climáticos intensos e extremos.

Um novo olhar para os desastres

Em São Paulo, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, reuniu o Cemaden, Centro de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais, criado pelos climatologistas Carlos Nobre e José Marengo, presentes na reunião. O Cemaden é uma dessas entidades do Estado que se tornaram essenciais, mas tem pouca visibilidade e ainda não entrou na agenda prioritária da sociedade e dos governos. Só não gosto da oficialização de desastres naturais no nome. O desastre é sempre social. Mas isto não lhe tira um mícron de seu valor para o país. Na reunião estavam, também, diretores do Cemaden, a ministra de Ciência e Tecnologia, Luciana Santos, o presidente do CNPq, Ricardo Galvão, que antes presidiu o INPE, Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o secretário Executivo do ministério do Meio Ambiente, João Paulo Capobianco e Tasso Azevedo, coordenador do MapBiomas.

Foi uma dessas raridades no Estado brasileiro. Uma reunião para olhar além da emergência e numa terça-feira de carnaval. Se pusermos os olhos no futuro, eles nos diz que não basta mitigar, reduzir emissões — o que não estamos fazendo a contento — é preciso investir em adaptação — o que nunca fizemos. Daniela Chiaretti nos contou tudo isso em uma página do Valor. Daniela sempre consegue, com suas matérias de excelência, abrir espaço de qualidade no noticiário para esse olhar de longo prazo sobre mudança climática, sempre no momento certo.

A reunião não descuidou das ações de emergência, mas preocupou-se em dar início a um processo de planejamento que evite novas tragédias sociais associadas ao clima. Para sorte das pessoas que vivem em risco climático no Brasil, todos os que estavam lá, sabem como olhar longe, para depois do desastre. A começar por Marina Silva, que sempre teve os olhos postos no futuro que precisamos construir. Carlos Nobre tem sido uma voz incansável a nos informar sobre o perigo climático e do desmatamento da Amazônia e que eles andam de mãos dadas. Sua visão longa do clima permitiu pensar o Cemaden e tirá-lo do papel. O coordenador do MapBiomas, Tasso Azevedo, tem se dedicado a contar a história do ataque aos nossos biomas, com imagens de satélite, não para lamentar o passado, mas para ajudar a planejar o futuro.

Fazer ressurgir essa visão de longo alcance, mesmo quando se olha para as emergências da hora, talvez venha a ser a maior contribuição concreta do novo governo Lula. Se ele levar adiante essa estratégia de prevenção de tragédias e souber manter a ampla união pela democracia que o apoiou, fará história e futuro.

O que fazer?

Os eventos extremos, como diz o climatologista Carlos Nobre, em entrevista a Daniela Chiaretti, não podem ser evitados e vão aumentar de frequência nos próximos anos e décadas. O encontro desses eventos com pessoas em áreas de risco é que pode e deve ser evitado. A ideia central é mapear e atualizar as áreas de risco e mudar o tratamento delas, aumentando a capacidade de ação antecipada, para remoção dos habitantes antes do impacto. Mas, isto é ainda emergência em planos de defesa civil. Uma questão de defesa civil alerta, sirenes funcionando, abrigos em áreas seguras, treinamento. O olhar de longo prazo pede uma revisão dos critérios de várias políticas públicas e programas de governo, integradas de acordo com uma macro estratégia que dê prioridade à eliminação dessas áreas de risco e ao monitoramento permanente, porque outras áreas de risco surgirão com a progressão da parcela inevitável da mudança climática.

Ao lado do governador de São Paulo e outras autoridades, Lula fala sobre a tragédia que resultou em mais de 40 mortos em São Sebastião, no litoral norte paulista. Foto: Ricardo Stuckert/Divulgação Presidência da República
Ao lado do governador de São Paulo e outras autoridades, Lula fala sobre a tragédia que resultou em mais de 40 mortos em São Sebastião, no litoral norte paulista. Foto: Ricardo Stuckert/Divulgação Presidência da República

Dou um exemplo, baseado em uma declaração de Lula em São Sebastião, quando disse ao prefeito que o Minha Casa Minha Vida iria assegurar aos desabrigados moradia adequada em lugar seguro. Falou tudo. O Minha Casa Minha Vida tem um potencial redistributivo e de indução de mudança social que jamais realizou. Sempre teve uma estratégia frouxa e critérios frágeis.

Um programa desse porte e com o custo que ele tem, não pode atender apenas ao objetivo de entregar moradias com rapidez a cada vez mais pessoas, não importa aonde, nem como. É um crime usá-lo como ferramenta de política clientelista. Ele deve ser um instrumento de mudança nos padrões de uso do espaço urbano. Precisa fornecer, além de moradia, educação, pronto atendimento de Saúde, mobilidade adequada e sustentável, energia distribuída, acesso digital. Deve mesmo focalizar as áreas de risco, para realocação da população que hoje as ocupa

Um plano como este poria o Minha Casa Minha Vida na ponta da estratégia de adaptação urbana à mudança climática inevitável. Poderia ser o indutor de uma verdadeira revolução urbana, rumo a cidades inteligentes e sustentáveis. O ministro Jader Filho precisa ir mais fundo na revisão do Minha Casa Minha Vida. A primeira mudança importante já foi feita. A decisão de subsidiar em 100% a faixa de menor renda, que havia sido excluída do programa, atende ao objetivo redistributivo. Mas o programa tem potencial para fazer muito mais e precisa se tornar uma ferramenta da estratégia de adaptação no Brasil urbano.

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