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Análise – Socorro! A maioria sumiu

O mundo passa por profunda, abrangente e radical mudança estrutural, tecnológica e climática. Na transição, há muita ineficácia dos governos. O desencanto com a democracia nasce do descontentamento social, e as eleições não levam a maiorias claras

Sérgio Abranches, para Headline Ideias
#POLÍTICA4 de out. de 2310 min de leitura
O socialista Pedro Sánchez, à esquerda, segundo colocado na eleição espanhola, terá o direito de tentar formar um novo governo após o fracasso de seu opositor número 1, o conservador Alberto Núñez Feijóo, que venceu a eleição, mas não conquistou maioria no parlamento. Foto: Thomas Coex/AFP
Sérgio Abranches, para Headline Ideias4 de out. de 2310 min de leitura

Não é só o presidente Lula que enfrenta dificuldades em formar maioria funcional no parlamento. A Espanha vive há tempos crônica deficiência de maiorias parlamentares. Nos Estados Unidos, pela primeira vez na história, o presidente da Câmara dos Deputados caiu por falta de apoio da frágil maioria republicana. De acordo com a deputada-celebridade Alexandria Ocasio-Cortez, a maioria republicana é mínima e, descontando mortes e renúncias, não passa de cinco votos de margem contra os representantes do partido Democrata. No Chile, o presidente Boric enfrenta impasse para aprovar uma nova constituição que substitua a carta autoritária imposta pelo ditador Augusto Pinochet. Boric não consegue negociar a maioria na Câmara e enfrenta problemas de articulação entre os partidos de sua coalizão.

Impasse espanhol

No parlamentarismo espanhol, maiorias precárias reunidas em coalizões internamente divididas em questões relevantes têm gerado instabilidade política crônica. A crescente dificuldade em formar coalizões estáveis e coesas nas Cortes tem levado à dissolução do parlamento e à convocação de novas eleições. O problema é que as escolhas eleitorais são fragmentadas, o volume de abstenção elevado e frequentemente as eleições não resolvem o impasse. Aconteceu mais de uma vez, ao longo dos últimos anos. Eleições que não definem maiorias estão se tornando frequentes e a sustentação dos governos, mais difícil. A Espanha teve que repetir eleições gerais para conseguir formar o governo em 2015 e 2019 e pode ter que fazê-lo novamente este ano.

As maiorias que resultaram da segunda chamada eleitoral, em 2015 e 2019, foram precárias. Por causa da debilidade de sua maioria parlamentar, o chefe do governo, socialista Pedro Sánchez, decidiu convocar eleições antecipadas em julho passado. Perdeu. O Partido Popular (PP), de direita, conseguiu o maior número de cadeiras. Mas não fez a maioria. Mesmo assim, o rei Felipe VI pediu a seu líder, Alberto Núñez Feijóo, que formasse o novo governo. Feijóo fracassou no intento de organizar uma coalizão majoritária. O encargo passou então a Pedro Sánchez, do PSOE, que precisará do voto do partido separatista catalão para alcançar a maioria.

O próprio Sánchez, presidente do governo em exercício, reconhece que “as negociações não serão fáceis e sim complexas e por isso digo que é o momento da generosidade e do compromisso”. Ele tem até o dia 27 de novembro para formar um governo. Os dois maiores partidos a esquerda, PSOE com 136 cadeiras, e Sumar, com 31, não alcançam a maioria necessária de 176 votos. Ele terá que atrair o apoio dos partidos independentes e dos separatistas catalães.

É provável que dessas negociações saia um governo fraco, prisioneiro de uma agenda pouco consensual entre os partidos da coalizão. Se Pedro Sánchez não tiver sucesso nas negociações, os espanhóis terão que voltar às urnas. Muitos analistas consideram alta a probabilidade de nova eleição e nenhum deles aposta que elas produzam uma maioria consistente.

O que passa com os Estados Unidos?

A inédita remoção de um presidente da Câmara dos Representantes nos Estados Unidos foi obra dos próprios republicanos. A ala radical de extrema-direita, próxima de Donald Trump, decidiu defenestrar o deputado Kevin McCarthy, descontentes com o acordo que ele fechou com os Democratas para evitar o fechamento do governo, com o impasse em torno do orçamento. A queda de McCarthy foi obra exclusiva dos Republicanos.

Em um sistema bipartidário, o partido majoritário tem todo interesse em dar força ao presidente da Câmara para controlar o processo político e neutralizar a oposição. Afinal, é ele que elege o presidente da Casa. No passado, dois “Speakers” renunciaram diante das dificuldades que encontraram com seus pares Republicanos. A Câmara está paralisada até que o novo Speaker seja escolhido.

O fato é que Kevin McCarthy foi um presidente fraco, incapaz de efetiva liderança, por causa das divisões no Partido Republicano. A ala extremista do partido prefere gerar impasses a aceitar o jogo político que, muitas vezes, no sistema americano, requer acordos bipartidários.

Durante a presidência de Trump, os republicanos mais radicais começaram a revolver as lamas em busca das raízes supremacistas que haviam sido cortadas pela guerra civil. Não por acaso, em vários estados dominados pela ultradireita trumpista a bandeira confederada voltou a tremular no mastro das casas legislativas e dos governos, até que sua exibição fosse proibida por se tratar de um símbolo racista. A natureza antidemocrática e predatória da ala de ultradireita do Partido Republicano liderada por Trump ficou evidente na invasão, também inédita, do Capitólio.

Donald Trump, ex-presidente dos EUA, fala com a mídia ao sair de uma seção eleitoral após votar nas eleições de meio de mandato em Palm Beach, Flórida, em 8 de novembro de 2022. Foto: Eva Marie Uzcategui/AFP

Trump provavelmente sairá vitorioso das primárias republicanas, a menos que a fieira de processos e eventuais condenações durante a campanha convença a maioria dos delegados a abandoná-lo. Não tem havido sinais de abandono de Trump por parte da ultradireita republicana. Os Democratas apostam, até agora, em Biden, que tem passado uma imagem de fragilidade física que pode lhe ser prejudicial. Mesmo que Biden perca e Trump vá para a cadeia, as profundas divisões na sociedade americana e o impasse social tendem a persistir.

Ao bipartidarismo que levava a uma polarização benigna, acoplou-se a polarização emocionalizada em alto grau que é maligna para o tecido democrático. Trump conseguiu formar um bloco destrutivo dentro do seu partido, embora sem um projeto consistente, exceto quanto à transição para um macarthismo institucionalizado, sob comando do presidente e com hegemonia no Congresso e na Suprema Corte.

O dilema chileno

O governo Boric não vai bem. Perdeu dois plebiscitos críticos para sua agenda de governo, o constitucional e o da reforma tributária. A inflação bordeja os dois dígitos. A popularidade do presidente erodiu rapidamente. Sem apoio social e enfrentando crescente oposição, renovou parte de seu gabinete, movendo-se mais ao centro, em busca de apoio mais consolidado no parlamento. Não teve sucesso até agora.

Boric se viu forçado a aceitar a renúncia do ministro do Desenvolvimento Social, Giorgio Jackson, seu principal aliado no projeto de socialismo democrático desde a militância no movimento estudantil. Jackson disse que saía porque a oposição política usava sua presença no gabinete “como desculpa para não avançar nos los acordos que o Chile demanda y requer”.

Em maio deste ano, Boric e seus aliados perderam as eleições para o Conselho Constitucional e, em decorrência, o partido Republicano de José Antonio Kast, de extrema-direita, ficou com a primeira minoria. Kast se tornou a principal força política no conselho, com poder de veto. A esquerda de Boric encolheu a ponto de perder o poder de veto. A direita tradicional foi superada pelos radicais sob liderança de Kast.

A maior parte dos problemas econômico-sociais que Boric enfrenta é legado do governo anterior de Sebastián Piñera. Como muito dos problemas que dificultam a gestão de Biden ele herdou de Trump.

Já os problemas políticos do presidente chileno se originaram na insatisfação social, que lhe tira popularidade e apoio eleitoral. O politólogo chileno Marcelo Mella atribui à inexperiência a demora de Boric em entender que não tinha maioria na Câmara e era indispensável construir uma coalizão pós-eleitoral que o fortalecesse politicamente e resolvesse a paralisia legislativa. Mas não explica o fato de que as eleições, tanto presidenciais, quanto legislativas, não resultaram em maiorias claras.

O principal impasse no Chile é constitucional. O projeto constitucional foi derrotado no plebiscito. A nova proposta precisa de um acordo entre a esquerda e a direita convencional para ser aprovada no conselho constitucional. Mesmo que se faça o acordo, ele não garante a sua aprovação em plebiscito. Até o momento, o texto existente é rejeitado por em média 54% da população, segundo as pesquisas de opinião.

O centro virou centrão

O presidente Lula tem tentado ampliar sua coalizão, negociando com o centrão, como se ele fosse o centro tradicional com o qual estava acostumado a lidar e tecer alianças. O centro antigo estava muito mais disposto a compartilhar o poder e tinha uma agenda conservadora moderada que permitia a um presidente mais à centro-esquerda, como Fernando Henrique, ou mais à esquerda, como Lula, acomodá-la em parte à agenda governamental. Essa acomodação se dava pela identificação de questões inegociáveis de cada lado, demarcando as fronteiras do possível. Era possível formar coalizões funcionais.

O centrão embora abrigue parte do centro tradicional dele difere radicalmente. O núcleo do centrão quer se apropriar do orçamento federal para irrigar seu projeto político que é local. Há lideranças do centrão com ambições na política nacional. Arthur Lira, presidente da Câmara, comporta-se como um primeiro-ministro e não esconde seu desejo de mover o regime brasileiro para o semipresidencialismo.

Sob seu comando, o Legislativo apoderou-se de nacos importantes do orçamento, usando o orçamento secreto como conduto para a desapropriação do Executivo tanto fiscal, quanto de poderes e prerrogativas. Continua a querer avançar sobre outras fatias do orçamento. A bancada de ultradireita, que se distribui entre essas três.

O caminho do centrão rumo à hegemonia parlamentar foi pavimentado pelos resultados eleitorais que levaram a bancadas pequenas, de 30-40 deputados. Multiplicaram-se os pontos de veto e a formação de maiorias passou a depender de um número imanejável de partidos, com agendas díspares e demandas conflitantes.

Independente do número formal de cadeiras controladas pelos partidos na sua coalizão, Lula governa em minoria. A transferência de poderes do Executivo para o Legislativo agrava a formação e gestão de uma coalizão majoritária. Lula não tem, no seu terceiro mandato, o mesmo poder de agenda que nos dois mandatos anteriores.

A única vantagem do Brasil é que aqui, o líder da extrema-direita está fora das disputas eleitorais. Ao contrário do que acontece nos Estados Unidos e no Chile. A Espanha, por ser parlamentarista, é um caso à parte e a extrema-direita do Vox não conseguiu ainda a musculatura que a ultradireita conquistou nos EUA, no Chile e no Brasil.

O candidato de extrema direita Javier Milei, que obteve 32.31% dos votos nas primárias para as eleições presidenciais da Argentina. Foto: Luis Robayo/AFP

Impasse geral

Vale lembrar que a Argentina pode se render eleitoralmente à ultradireita, dando a vitória a Javier Milei, no final deste outubro de 2023. Ele se diz um anarquista de direita, um libertário, antiestado e promete governar por plebiscito porque será minoritário no Congresso. A única forma de conseguir seu intento é mudando as regras do jogo democrático na Argentina. Milei é uma ameaça potencial de colapso econômico-social e democrático.

Todas as democracias se vêem ameaçadas pelo desencanto dos cidadãos. Em cada país, a crise da democracia se manifesta a seu próprio modo. As instituições mostram diferentes graus de resistência e adaptabilidade. Onde há democracia no mundo, o desencanto dos cidadãos tem provocado ataques às instituições fundamentais do regime.

Na grande transformação global pela qual passamos, o  intervalo entre a decadência e o amadurecimento do novo produz um vazio de respostas que gera frustração e insatisfação em todos os setores da sociedade. Um desgosto que atinge parcelas cada vez maiores de todas as classes sociais e leva ao desencanto com a democracia. Nenhuma democracia está inteiramente apta a apresentar soluções eficazes para a insegurança, as perdas e o mal-estar produzidos por esse processo. A insatisfação generalizada leva à fragmentação da sociedade. As escolhas populares se tornam voláteis e é cada vez mais difícil retirar uma maioria do voto popular.

Não tenho resposta pronta sobre como superar este impasse. Minha intuição diz que talvez estejamos precisando de uma teoria da transição, que permita desenvolver políticas-ponte que ajudem a construir o futuro democraticamente. Políticas de transição que façam a ponte para as novas ordens sociais em formação neste processo de mudança radical.

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