#POLÍTICA
Reforma ou pacto federativo?
A reforma tributária não parece mais ter vetos rígidos contra ela. O clima para aprovação é bom, mas falta negociar os detalhes. É onde tudo empata
Sérgio Abranches, para Headline IdeiasA reforma tributária está em negociação concentrada esta semana na Câmara dos Deputados. Ela ficou coarando anos a fio. A ideia foi amadurecendo e o consenso foi se formando. Governadores e prefeitos passaram a apoiar a ideia. Mas, como sabemos, governadores e prefeitos, para bem da democracia, são substituídos nas eleições municipais. Com a mudança, a negociação precisa recomeçar, para incluir os novos eleitos. É como se a elite política tecesse o tapete de Penélope. Como se sabe, Penélope, à espera de Ulysses, tecia o tapete durante o dia e o desfazia à noite.
Agora são bons os sinais de que a reforma pode andar. Ela está sendo negociada nos seus detalhes e não se discute mais a oportunidade ou não de realizá-la. A confusa teia de tributos, o novelo irremediável de regras, os custos para todos os setores, inclusive o Estado, que tem suas receitas indexadas e garantidas, levaram ao consenso pela necessidade de uma reforma. Há debate, ainda sobre que reforma seria a melhor. Mas, parece que a grande maioria concorda que qualquer reforma é melhor do que nenhuma.
Clima bom
Estavam ontem em Brasília para negociar a reforma cerca de 10 governadores e algumas dezenas de prefeitos. Chegaram com as pastas cheias de vetos. Ao que tudo indica, diante da abertura do relator ao diálogo e a ajustes no projeto para atender às principais objeções, à noite, já haviam engavetado a maior parte dos vetos e estavam de acordo com o miolo da reforma.
O governador Renato Casagrande, do Espírito Santo, disse a Míriam Leitão que há clima político para votar a reforma. O presidente da Câmara, Arthur Lira, disse que continuará a ouvir governadores e prefeitos para que a reforma possa entrar em pauta e ser votada pelo plenário ainda esta semana.
A reforma é muito necessária mesmo e, se aprovada, terá que ser complementada pela mudança na estrutura dos impostos diretos, no imposto de renda e nos penduricalhos que incidem sobre a renda pessoal e empresarial. Se as duas reformas vingarem, há uma boa chance de que a desigualdade caia. A reforma que está em pauta é dos impostos indiretos e tem impacto decisivo nas relações entre a União, os estados e os municípios. Pode ser o começo de um processo de federalização fiscal, com importantes efeitos positivos em nossa democracia e no funcionamento do presidencialismo de coalizão.
Complexidades
Pacto federativo já virou uma expressão gasta. Desgastou-se por se falar tanto em sua necessidade durante mais de uma década e não se avançar quase nada nesta direção. Se a Câmara, de fato, aprovar a reforma e ela for bem sucedida também no Senado, este pode ser o começo de um novo pacto federativo, que levaria à descentralização da governança, aumentando a autonomia e as capacidades dos estados e municípios.
Se isto acontecer, a pressão fiscal sobre o Governo Federal será reduzida e a relação Executivo/Legislativo mudará, alterando a lógica do presidencialismo de coalizão. Mas, por enquanto, tudo isso é desejo. Para começar a se tornar real, o primeiro passo é a aprovação da reforma tributária na Câmara dos Deputados e, depois, no Senado.
É um processo que tem suas complexidades. A estrutura tributária interessa, de forma diferenciada, a muitas forças na sociedade, no mercado e na política. Há clivagens entre estados produtores e estados consumidores, entre estados grandes e estados pequenos, entre estados e municípios, entre estados, municípios e União. Esses interesses são representados de forma diferenciada nas duas Casas do Congresso.
Diferentes representações
Na Câmara, os estados grandes e mais ricos têm a maioria. A representação proporcional lhes dá esta vantagem. No Senado, os estados menores e menos desenvolvidos têm a maioria. A representação majoritária e paritária, que lhes confere o mesmo número de senadores (três) garante essa maioria. Daí porque o que se acorda na Câmara pode não ter apoio majoritário no Senado.
Os deputados sabem disso e esta é uma das razões pelas quais estão ouvindo prefeitos e governadores. Deputados representam seus estados, mas também expressam correntes de opinião, interesses de grupos sociais e econômicos, organizações da sociedade civil. Tendem a se unir em torno dos interesses de seus estados apenas em matérias como a tributária, que tem impacto material em suas bases.
Fim dos "vetos rígidos"
Com a participação dos governadores e prefeitos nas negociações na Câmara, parte das objeções que seriam feitas no Senado pode ser resolvida pelos deputados. Os políticos deram um primeiro e relevante passo, muito desprezado nas análises, saindo da oposição a qualquer reforma concreta. Esta oposição era mascarada pelo apoio geral a uma reforma abstrata. Este tipo de oposição é fonte de “vetos rígidos”, que consideram determinadas questões inegociáveis.
Ao passarem a um sim condicional, os vetos se tornam flexíveis, suscetíveis à negociação. Não significa, ainda, um voto sim. Quer dizer que a matéria ainda não está pronta para votar, mas está madura para ser negociada ponto a ponto.
É neste estágio em que parece estar, no momento, a reforma tributária. Ter clima político para votar, significa que as negociações estão andando. O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, chegou a Brasília em oposição e saiu dizendo que concorda com 95%. As objeções remanescentes, segundo disse, são pontuais e “fáceis de serem ajustados”. Ele se mostrou cooperativo após se encontrar com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que foi seu adversário na disputa pelo governo de São Paulo, em 2022.
Governadores e prefeitos têm voz
Parte deste avanço recente dos entendimentos em torno da reforma tributária tem origem na trágica experiência com a pandemia e o desgoverno negacionista de Bolsonaro. Os governadores tiveram que se tornar protagonistas na luta contra a pandemia e na pressão ao Governo Federal, para forçá-lo a providenciar vacinas e medicamentos essenciais, como aqueles necessários ao entubamento dos casos de gravidade, que requeriam tratamento em UTIs. Eles se reuniram com este objetivo em uma frente, passaram a se entender para além das diferenças partidárias e a operar com pautas de interesse geral.
Nem todos estão no comando dos estados no momento. Mas a experiência valeu e criou canais que os novos governadores podem usar. O mesmo se pode dizer dos prefeitos, que tiveram que fazer o mesmo por seus municípios. Ao voarem para Brasília para expor aos parlamentares suas objeções e seus temores sobre a reforma, muito poucos estavam na posição de “veto duro”. Os vetos flexíveis estão sendo negociados. Estarão em negociação até o momento de iniciar a votação.
Quem manda na distribuição
O ponto principal em discussão é a governança do Conselho Federativo. Ela terá que ser desenhada de modo a que governadores e prefeitos não sintam sua autonomia reduzida e possam evitar perdas de receita na repartição do IBS, o IVA estadual.
Como a reforma prevê que sua arrecadação seja centralizada, o nó político é quem decidirá a distribuição aos estados e municípios, com base em que critérios. Se a coleta é centralizada, a gestão também terá que ser, mas ela pode ser cooperativa, participativa e transparente. Os outros pontos de divergência são ainda mais pontuais e fáceis de acertar.
Até que se forme maioria robusta, que ultrapasse o mínimo necessário, o projeto não será votado. Mas, a expectativa da maioria dos que estão envolvidos na negociação dos ajustes com o relator da matéria, é que ele tem uma boa chance de ir a votação ainda esta semana.
Se a reforma passar, ela poderá servir de ponto de largada para um novo pacto federativo, que descentralize política, financeira e administrativamente a federação brasileira.
A hipercentralização é um dos fatores determinantes do toma-lá-dá-cá em que se transformou o presidencialismo de coalizão brasileiro. A descentralização valorizaria a política estadual e municipal e abriria uma avenida para a redefinição dos papéis federativos, deixando ao governo federal as tarefas estratégicas e a busca do equilíbrio nas políticas públicas mais necessárias e relevantes para a Nação.