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Análise – Quatro dias para definir o resto da vida

A Argentina está a quatro dias de escolher um novo presidente. Nenhum dos candidatos convence nos temas que mais afligem a população, deixando o país frente ao mais incerto futuro

Sérgio Abranches, para Headline Ideias
#INTERNACIONAL15 de nov. de 235 min de leitura
Em 14 de agosto, as autoridades monetárias argentinas desvalorizaram o peso em cerca de 20%, antecipando uma reação do mercado ao forte desempenho do político de extrema direita Javier Milei em uma eleição primária presidencial. Foto de Luis Robayo/AFP
Sérgio Abranches, para Headline Ideias15 de nov. de 235 min de leitura

A Argentina vive uma semana decisiva. Talvez a mais dramática e desafiadora desde o final da ditadura. A hiperinflação arrasou o valor do peso, o dólar se tornou o ativo principal de segurança de todos, a crise econômica quase permanente dizimou a classe média de um país que era uma sociedade de classe média, demograficamente madura, há décadas. O ministro da Economia, Sergio Massa, piloto  de uma fracassada política econômica, promete que fará diferente se for eleito presidente. Ele disputa o segundo turno, palmo a palmo, com Javier Milei, um despreparado candidato de extrema direita, que promete demolir as instituições argentinas herdeiras do peronismo da época de Juan Perón. A demografia madura do país implica em alta dependência da maioria da população à previdência social, que Milei quer privatizar.

Os dois candidatos têm mais carga negativa para descartar do que valores positivos para promover. Um é o comandante econômico de quatro anos muito ruins para a economia argentina. O outro tem dado demonstrações de despreparo para presidir o país e desconhecimento de questões-chave para o futuro da Argentina. É uma eleição em que o eleitor provavelmente vai escolher o que represente o menor mal para o país em sua visão. Em outras palavras, o eleitor vai sopesar mais defeitos do que qualidades, para escolher aquele que lhe parecer ter menos defeitos do que o outro ou defeitos menos graves. É difícil imaginar que o eleitor vá mesmo acreditar que Massa presidente fará algo diferente na economia. Também é difícil acreditar que Milei não adotará medidas heterodoxas na economia e na política.

A Argentina, ao contrário do Brasil, não tem o hábito de formar coalizões de sustentação política do governo. As coalizões só existem no plano eleitoral. Milei não terá condições de governabilidade pela via da negociação parlamentar. A política argentina carece de know how para negociar consensos ou maiorias. A nova composição do Congresso argentino mostra tanto Câmara quanto o Senado muito divididos, sem maioria seja para Massa, seja para Milei. Mas, é evidente que Massa teria melhores condições de conseguir maiorias eventuais do que Milei. De qualquer forma, os dois terão a governabilidade muito dificultada pela fragmentação parlamentar.

A inflação argentina se aproxima de 200% pelas estimativas de economistas de mercado. Ela está em 142% no acumulado em 12 meses. Nenhum dos dois candidatos apresenta um plano claro de estabilização. Massa diz que fará diferente para evitar que a inflação chegue a 270% no melhor cenário prospectivo. Milei diz que combaterá a hiperinflação dolarizando a economia, mas não diz como, nem onde conseguirá dólares. A Argentina está praticamente sem reservas e não tem uma receita mágica para obter dólares para valer.

A Argentina namora a autocracia com Milei. Ele e sua candidata a vice, Victoria Villarruel, são apologistas do período ditatorial. Pode estar rumando para o colapso com um ou outro eleito presidente. A crônica crise inflacionária argentina e a prolongada depressão econômica estão no centro das preocupações que levam os eleitores às urnas e nenhum dos dois candidatos se mostra aparelhado para remediá-las.

Massa e Milei estão disputando perto de 11% dos votos que estão disponíveis, na média das últimas pesquisas para o segundo turno, realizadas na semana passada. São os indecisos e os que preferem votar em branco. O restante dos votos parece já estar assegurado por cada um, praticamente em empate técnico, com em média 44,6% dos votos para Milei e 42,7% para Massa. A vantagem de Milei sobre Massa é muito pequena e está na margem de erro. Será provavelmente um resultado muito apertado, difícil de prever. Das 12 pesquisas registradas pela imprensa argentina, sete dão vitória a Milei, entre elas a Atlas/Intel, que acertou o resultado do primeiro turno, ficando bem próximo do que saiu das urnas.

Nuvens carregadas

O horizonte argentino está indefinido e coberto por nuvens carregadas. É impossível prever o resultado do segundo turno, Milei ficou em segundo no primeiro turno, mas recebeu o apoio do ex-presidente Mauricio Macri e de sua candidata presidencial Patrícia Bullrich. As pesquisas parecem indicar que ele conseguiu capturar o voto de direita que foi para outras candidaturas. A Atlas/Intel que Milei herdará 73% dos votos dados a Patricia Bullrich, a terceira mais votada no primeiro turno.

Ministro da Economia, Sergio Massa venceu o primeiro turno das eleições, mas não desperta entusiasmo nem mesmo entre eleitores "justicialistas". Foto: Comitê de Campanha/Divulgação

Massa conseguiu o apoio dos candidatos da esquerda e centro-esquerda no primeiro turno e busca ganhar os eleitores do governador de Córdoba e ex-candidato a presidente, Juan Schiaretti, que, como ele, é justicialista (o peronismo sem Perón). Mas, Schiaretti tem feito duras críticas ao desempenho de Massa como ministro da Economia, ao longo da campanha para o segundo turno. Segundo ele, o que se tem visto nos últimos tempos “é fruto da inflação descontrolada do governo kirchnerista. Cada vez o dinheiro compra menos”. Só para ficar claro, todos consideram o governo Alberto Fernández continuação do kirchnerismo, em geral é identificado como Kirchner/Fernández. Não se pode esquecer que a desacreditada Cristina Kirchner é a vice de Fernández.

Lembro de uma entrevistada argentina, em Buenos Aires, no longíquo ano de 2003, dizer à jornalista Míriam Leitão sobre seu país: “No hay futuro”, não há futuro, em uma série para o Bom Dia Brasil, da TV Globo. Era a eleição que deu a vitória a Néstor Kirchner, inaugurando a era kirchnerista. Pois o futuro nunca pareceu tão incerto para a Argentina como neste novembro de 2023. As opções presidenciais não convencem nos principais temas que afligem a nação. A crise econômica e a hiperinflação devastam o país. Os filhos de pais que foram da classe média, hoje empobrecidos, votam majoritariamente não propriamente em Milei, mas numa escolha niilista do tipo “danem-se todos”. É difícil mesmo imaginar que futuro terá a Argentina a partir da posse do novo presidente.

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