Conecte-se

Ideias

#POLÍTICA

Pólos antidemocráticos

A democracia é sempre atacada pelos extremos. Eles se igualam ao desqualificar quem faz qualquer crítica. Não debatem, apenas ofendem e difamam. Os extremos cultivam a linguagem do ódio. A democracia vive do debate civil, com argumentos e contra-argumentos.

Sérgio Abranches, para Headline Ideias
#POLÍTICA2 de ago. de 236 min de leitura
Arte: Carol Macedo
Sérgio Abranches, para Headline Ideias2 de ago. de 236 min de leitura

Em 2010, o centenário sociólogo Edgar Morin publicou Ma Gauche (Minha Esquerda), separando-se das posições convencionais do campo político da esquerda. Ele se afastava da inflexibilidade do pensamento da esquerda ortodoxa. No ano seguinte, completou seu percurso crítico com La Voie (A Via), livro no qual mostrava o caminho para o futuro, da perspectiva da esquerda democrática tal como ele a definiu em Ma Gauche. Morin desmentia os preconceitos do etarismo, mostrando que um pensador, então com noventa anos (em 8 de julho ele completou 102 anos) pode acompanhar o cenário contemporâneo, ter a mente aberta e refletir com coerência sobre as mudanças do presente e as possibilidades do futuro.

Eu, como Morin, me reconheço como parte do campo da esquerda, mas não tenho simpatia pela esquerda intolerante e raivosa, avessa a controvérsias. Para mim, há uma esquerda democrática e uma esquerda que resvala no autoritarismo. Embora seus projetos de sociedade tenham vários pontos em comum, na política seus métodos e propósitos se distanciam. A esquerda democrática aceita e se engaja no debate com argumentos, respeitando o opositor, ao contrário da esquerda autoritária que busca anular os críticos.

Após pequena trégua, recomeçaram os ataques dessa parte da esquerda intolerante à crítica argumentada a decisões específicas do governo Lula ou a um ou outro de seus colaboradores. Para esta esquerda, quem examina criticamente aspectos do governo Lula, independentemente do que tenha dito a favor dele e de suas políticas, é desqualificado, ofendido e apontado como "bolsonarista" ou aliado à extrema direita.

Na extrema direita, observa-se o mesmo comportamento, com valores diferentes. Quando a crítica é dirigida a Bolsonaro e seu séquito, o autor é desqualificado, ofendido, ameaçado e denominado petista por uns, comunista por outros. Como sabemos, petista e comunista são sinônimos no limitado vocabulário da extrema direita.

Embora a esquerda autoritária e a extrema direita não sejam equivalentes plenos, essas correntes são incompatíveis com uma sociedade democrática, igualitária e solidária. Não vejo como defender o igualitarismo, o fim das desigualdades socialmente produzidas, sem defender e assegurar a liberdade para todos. Não há igualdade sem liberdade, nem há liberdade sem igualdade.

Hannah Arendt e Karl Marx mostraram, em seus respectivos trabalhos, que é preciso ter a liberdade de ser livre e esta liberdade é conferida pelo acesso aos meios de vida digna. Ao escrever pela primeira vez sobre pobreza no Brasil, há quase quatro décadas, em pequeno ensaio, Os despossuídos: desigualdade e pobreza no país dos milagres (Zahar, 1985), registrei a relação necessária entre liberdade e igualdade. “As pessoas muito pobres, que consomem a maior parte de suas energias apenas para sobreviver por um triz, não podem atuar como cidadãs íntegras. A necessidade tolhe a liberdade. Por isso são, também, politicamente fracas e sua existência debilita toda a estrutura política das liberdades.” Desde então, para mim, estava dado que o socialismo ou é democrático, ou nem socialismo é.

A democracia é o território do plural e do diverso. A linguagem da democracia é o debate de ideias, o confronto de projetos. A democracia exige que se respeite a presença no espaço público de quem usa argumentos contra e a favor de determinado governo, política ou agente público. A democracia somente permite excluir da conversa os que recorrem à linguagem do ódio, à mentira e à ofensa pessoal. A linguagem do ódio é abominável à esquerda e à direita.

A direita democrática conseguiu sobreviver nas democracias do após-guerra porque tomou posição nítida contra Hitler e Mussolini, contra o nazismo e o fascismo. No Brasil, a direita democrática só agora, após a derrota e a inelegibilidade de Bolsonaro, começa a se afastar da extrema direita. Apenas uma minoria mais lúcida desta corrente juntou-se imediatamente à ampla aliança para eleger Lula.

A extrema esquerda no Brasil torceu o nariz para a ideia de uma frente ampla democrática que era, evidentemente, mais anti-Bolsonaro do que pró-Lula. Qualquer crítica que identificam como do campo liberal, ou neoliberal, é objeto de ataques em tudo semelhantes àqueles que a extrema direita desfere contra qualquer crítica a Bolsonaro e seus asseclas. Nem o centro, nem a esquerda democráticos escapam da fúria extremista à esquerda. No séquito de Bolsonaro, a direita crítica vira esquerdista de imediato e tem o mesmo tratamento ofensivo destinado às esquerdas.

Os polos extremos se encontram no uso do mesmo método para vedar o debate, sufocar a crítica, agredir e ofender o crítico . Encontram-se no vazio completo de argumentos em suas diatribes. Aproximam-se, também, no reacionarismo. A extrema esquerda caiu no reacionarismo ao se mostrar incapaz de rever conceitos e políticas historicamente superadas. Confunde o passado-passado com a história, como ferramenta dinâmica do pensamento crítico. A direita porque aderiu ao que Zygmunt Bauman chamou de retrotopia, uma utopia de passado, um passado idealizado, inexistente e inexequível enquanto tal. Argumentos extremistas à esquerda muitas vezes caem na sua própria retrotopia. É o caso do resgate do stalinismo.

Sem a noção de que este terceiro governo Lula não é da esquerda, nem do PT, é de uma aliança plural que teve a consciência e a visão para definir corretamente o inimigo principal (uma dificuldade recorrente para a esquerda tradicional). Esta definição de quem era o opositor, definiu os aliados eletivos e permitiu a criação da frente ampla que derrotou Bolsonaro. Este, caminha a passos largos para a lata de lixo da história. Mas a extrema direita não foi derrotada.

A correta visão histórica da luta pela democracia indica que os governos que dela surgem são na sua maioria esmagadora governos de coalizão. Coalizão entre partidos, ou coalizão entre facções de correntes partidárias. Poucos são governos unitários. Mas, fundamentalmente, nenhuma democracia sobreviveu à hegemonia de um partido. A facção hegemonista da esquerda é, por definição, antidemocrática.

A ampla evidência das intenções golpistas de Bolsonaro e seu séquito de extremistas políticos, militares e religiosos mostra que eram hegemonistas. Queriam a hegemonia de seu grupo. Hesito em escrever partido porque o culto à personalidade no caso de Bolsonaro sempre foi avesso a partidos. O partido não passa de uma ferramenta descartável para atingir o poder.

Intolerância, hegemonismo, desqualificação, ofensas em lugar de argumentos são elementos formais que caracterizam a ação política extremista seja à direita, seja à esquerda. A esquerda convencional que se tornou intolerante e se deixa guiar por esses métodos aproxima-se tanto da direita neofascista na forma que estrangula as diferenças de conteúdo.

#POLÍTICA
EXTREMISMO
ESQUERDA
DIREITA
LULA
BOLSONARO