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Pertence, o magistrado

Morre aos 85 anos, José Paulo Sepúlveda Pertence, um dos mais notáveis magistrados do Brasil contemporâneo. Autor de votos referenciais no STF e militante das boas causas

Sérgio Abranches, para Headline Ideias
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O ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Sepúlveda Pertence. Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil
Sérgio Abranches, para Headline Ideias2 de jul. de 234 min de leitura

Meu pai era então professor na UnB, a Universidade de Brasília. Eu estava, ainda, no ginasial, equivalente aos anos finais do fundamental. Ele era encantado com a inteligência e o conhecimento de alguns alunos, que já atuavam como monitores. Gostava de dois, em particular. Colegas, José e Suely logo começaram a namorar. Nos finais de semana, meu pai costumava convidá-los para almoçar conosco.

Suely morava na quadra vizinha à nossa e tinha dois irmãos mais novos. Eu costumava encontrar-me com ela também em sua casa, que frequentava assiduamente, porque seu irmão Paulo era meu amigo, tocava violão, apaixonado por Bossa Nova. Sou o apaixonado por música que nem toca, nem canta. Sou um ouvinte profissional.

O José era José Paulo Sepúlveda Pertence, para nós, o Pertence. Nunca o chamamos de José. Ele foi amigo de meu pai, de minha mãe, de meu irmão. Foi meu amigo. De todos, acabei sendo o que conviveu mais tempo com ele. Meus pais morreram relativamente jovens e meu irmão, Ricardo, em um acidente. Pertence esteve ao meu lado, no enterro de cada um deles. Não vou poder ir ao seu enterro, como não pude ir ao de Suely. Eu estava longe, quando ela morreu.

Mas quero falar de Pertence e Suely vivos. Jovens brilhantes, militantes sérios. E Suely tinha por sobrenome Castello Branco. Foram muitas as vezes em que almoçamos juntos na mesa de meus pais. Eu ouvia suas conversas sobre o direito, sempre muito animada, e as conversas políticas, cada vez mais apreensivas. Devo àqueles almoços parte da minha formação. Aprendi com a conversa inteligente dos três o que não se aprende na escola, nem na faculdade.

Conversava com eles, que nunca me trataram com a ligeireza com que se costuma tratar o muito mais jovens. Ouviam minhas opiniões de iniciante na militância secundarista, corrigiam os arroubos adolescentes e reforçavam as trilhas que eu começava a trilhar.

Às vezes, juntava-se ao grupo um outro jovem brilhante, um baiano bem falante — não são todos? — e muito inteligente, Inaldo. Ele era mais interessado em história do que em direito. Para custear seus estudos em Brasília, vendia móveis antigos da Bahia. Tenho um baú, uma mesa e um catre de jacarandá que ficaram comigo, quando a casa de nossos país foi definitivamente fechada.

Na militância, papai teve o apoio de Pertence para ser eleito presidente da seccional da Ordem dos Advogados do Brasil do Distrito Federal, que lhe valeu votos dos associados mais jovens e mais à esquerda dele, um liberal social verdadeiro, entusiasta de Aneurin Bevan e da saúde pública. Quando Pertence se candidatou, meu pai fez campanha para ele junto à "velha guarda". Ajudou-o a conquistar o voto dos liberais que o consideravam muito à esquerda.

Pertence acompanhou minha carreira. Cada passo dela. Eu, com orgulho, dizia sempre, a cada degrau da exitosa carreira de Pertence, que era amigo meu, amigo da minha família. Minha mãe, funcionária graduada do Supremo Tribunal Federal, após deixar a diretoria de distribuição, trabalhou no gabinete de Pertence, até se aposentar.

Saber da morte de Pertence me lançou, como podem ver, no túnel do tempo. Fez-me retornar à minha adolescência, para relembrar pessoas queridas. Não entrei nesta dobra do tempo para me entristecer, ao relembrar as perdas todas. Foi uma viagem de felicidade. Se compusesse, talvez escrevesse uma Ode à felicidade, à moda de Beethoven.

Felicidade do orgulho de ter tido pais e este amigo, servidores públicos por toda a vida, que, dos quais se pode dizer, como últimas palavras de adeus, que viveram uma vida íntegra, dedicada ao bem público e à Justiça. Neste sentido, não morreram antes do seu tempo, viveram uma vida completa, antes do fim.

Pertence, mineiro de Sabará, teve uma carreira completa desde que chegou a Brasília. Dos estudos equivalentes, então, ao mestrado, à militância nos tribunais, à magistratura. Mas não é da carreira completa que falo. Falo da vida que se completa, porque foi vivida com integridade e dedicação às boas causas. Todos sabemos como é difícil dizer de um servidor público que viveu com integridade. Não devemos nos esquecer, como muitos o fazem hoje, que um Procurador Geral da República, um ministro da Suprema Corte é, antes de tudo, um servidor público. Perdemos um exemplo cada vez mais raro de homem público.

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SEPÚLVEDA PERTENCE