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Os originários

Dois documentários nos mostram como vivem e sofrem os indígenas, com a violenta e destrutiva invasão de suas terras. Servem de alerta para o estrago adicional que o assédio legislativo aos direitos dos indígenas pode fazer

Sérgio Abranches, para Headline Ideias
#meio-ambiente4 de jun. de 2314 min de leitura
Interdição da rodovia Bandeirantes pelos indígenas do Jaraguá contra a PL 490 do marco temporal. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
Sérgio Abranches, para Headline Ideias4 de jun. de 2314 min de leitura

O Brasil pode não perceber, mas vivemos um momento de perigoso ataque frontal do agronegócio politicamente dominado pela lavoura arcaica contra os indígenas e suas terras. Este ataque é legislativo, mas tem o mesmo efeito do correntão na mata. O arrastão desfigurou os ministérios do Meio Ambiente e dos Povos indígenas. A Câmara dos Deputados aprovou o marco temporal, que destrói todo o arcabouço de proteção dos povos indígenas e transforma a demarcação de suas terras em um jogo marcado a favor dos invasores. Outras medidas de ataque ao meio ambiente e aos povos indígenas no âmbito do assédio legal estão também em curso. O marco temporal reúne o correntão e a draga. Destrói, mata e polui.

Não se pode dissociar a questão indígena da questão fundiária. Há racismo envolvido, mas o objetivo concreto é a terra, seja para soja e gado, seja para madeira, ou para garimpar e de quebra envenenar os rios e seus peixes. Não foi por acaso que miraram o CAR, Cadastro Ambiental Rural, e a demarcação de terras indígenas. O CAR foi transferido para o ministério novato da Inovação e gestão nos serviços públicos, que não podia ser mais estrangeiro ao seu uso. A demarcação das terras indígenas voltou para o ministério da Justiça. Ele era o abrigo tradicional da demarcação, porque tinha também sob sua jurisdição a Funai. Mas, agora, os indígenas têm uma pasta a eles dedicada e que dirigem, e a Funai é parte central da pasta dos Povos Indígenas. Uma sem a outra arriscam perder eficácia e qualidade. Em suma "tratoraram" os dois ministérios.

O que a operação desmonte tenta fazer é separar as políticas de suas ferramentas de implementação. A defesa dos povos indígenas começa pela demarcação de suas terras. O CAR é o instrumento mais eficaz de fiscalização do uso da terra e de regularização fundiária. Uso da terra é a principal fonte de emissões de gases-estufa no Brasil, por causa do desmatamento e das queimadas a ele associadas. A justificativa é que a demarcação fere o direito de propriedade e que, se o governo quiser demarcar, deve pagar indenização e não pode ficar na mão dos indígenas. O CAR, dizem, é mais rural que ambiental e não pode ficar numa pasta ideológica que privilegia o ambiental.

Duas mentiras com cobertura ideológica e embrulhadas em sofismas. A terra que se demarca é pública. Se tiver ocupantes não-indígenas, é grilagem, invasão. Não se indeniza o crime. Direito de propriedade? Quem ocupava a terra antes de nós, não-indígenas, chegarmos eram eles, os povos originários ou históricos da Amazônia. É a isto que a Constituição se refere ao reconhecer em seu artigo 231 "os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens".

Para quem escrevo

Fico a imaginar o leitor do Brasil urbano, cheio de dúvidas e dívidas, insone com suas aflições cotidianas, diante do que escrevo acima. Parece muito distante. Mas, não se enganem. A qualidade do resto de nossas vidas nas cidades depende crucialmente da preservação e restauração de nossas matas e florestas. E a preservação de nossas matas depende fundamentalmente dos povos e seres que as habitam. Embora à distância — e as distâncias no Brasil, físicas e sociais, são amazônicas — nossos destinos estão ligados ao dos povos originários. Entre os brasileiros há aqueles que consideram bobagem ambientalista comover-se com a tragédia dos Yanomami, ou com as ameaças de garimpeiros, grileiros, boiadeiros e madeireiros à vida de praticamente todos os povos indígenas. Não pretendo, nem tento, convencer esta parte do Brasil, que perdeu a empatia e os valores comuns da humanidade. Não escrevo para eles. São capazes não só de assistir, como de participar do extermínio das pessoas que consideram um estorvo.

Escrevo para a maioria dos brasileiros que se comove com o sofrimento das pessoas, mas que não consegue dimensionar a cultura, a beleza e a força dos povos indígenas. Aqueles que ainda não compreenderam como uma cultura baseada na oralidade pode ser tão potente e sofisticada.

Os brasileiros que estão longe e alheios, a ponto de não conseguirem ter a noção exata do que é uma pessoa indígena, agora têm a oportunidade para conhecê-los. Basta dedicar um pouco mais de uma hora e meia por noite, para assistir a dois documentários que acabam de ser lançados.

Os originários, os isolados e seus amigos

O primoroso "Vale dos Isolados: o assassinato de Bruno e Dom", mais uma grande reportagem de Sonia Bridi e Paulo Zero, sob a forma de documentário, um lançamento da Globoplay, faz muito mais do que reconstruir minuciosamente o assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips. É um registro múltiplo que contrasta a beleza do Vale do Javari, a brutalidade inumana a que chegaram pessoas enredadas nas cadeias do crime organizado, a dedicação de indigenistas e a força natural e solidária dos indígenas.

É um espanto ver o contraste entre a frieza e o cinismo de assassinos, invasores de terras e a força dos valores que une não-indígenas aos povos do Vale. A coragem e o desprendimento de indigenistas que ajudam os indígenas a se organizar como guardiões da floresta, nas falhas evidentes da proteção estatal. A inteligência de povos como os Marubo, que destacam alguns dos seus parentes para irem para a cidade estudar, para poder defendê-los e apresentá-los ao Brasil e ao mundo com as ferramentas da sociedade urbano-tecnológica. Alguns se formam em direito para advogar a causa indígena. Outros em comunicação. Outros transferem o conhecimento oral para o papel, para que os não-indígenas possam conhecer suas ideias, sua cosmologia.

O documentário caminha com destreza entre a beleza e a destruição. Entre a exuberante natureza preservada e a crueza dos invasores que a assediam para matar e destruir. O Vale do Javari abriga mais de 8 etnias e tem a maior população de povos isolados do mundo. Está preservado por ter terras indígenas demarcadas e por não estar cortado por estradas. Tudo é água, o resto é mata, diversidade de flora, fauna e humana.

Está sob assédio por vários lados. A pesca ilegal se infiltra no território, desrespeita as leis da natureza e mata quem se opuser, indígena e não-indígena. A garimpagem cerca o vale por outro lado, com centenas de dragas, como couraçados prontos a bombardeá-las com suas bombas de mercúrio. Quem vê a quantidade e o tipo de equipamento que trazem, sabe logo que é preciso muito dinheiro. Quem faz o investimento se esconde covardemente nos confortáveis condomínios climatizados. O narcotráfico, cerca e invade por outro lado, pela fronteira peruana, desmatando para plantar a coca e para instalar destilarias e produzir a cocaína sob a proteção de seus rifles e da floresta restante. Só uma minúscula parte desta cocaína fica no território para escravizar indígenas. O resto se espalha pelo Brasil urbano, levando a violência para sua periferia. Quando Sonia Bridi e Paulo Zero chegaram à fronteira peruana do Vale do Javari, para documentar a conexão do narcotráfico com o cerco ao território indígena, foram expulsos pela polícia do Peru.

Hannah Arendt ensinou que para se ter liberdade verdadeira, é preciso ter a liberdade de ser livre. A droga, a bebida e a fome, escravizam na necessidade e impedem as pessoas de serem livres. É o que contam lideranças sobre aqueles poucos que aparentemente passaram para o lado de lá.

Mesmo quem se comove, pode pensar que por lá nada se passa de diferente do que acontece nas periferias urbanas, onde o crime também mata e destrói. Há mesmo, um paralelo. O extermínio de indígenas pelos vários tipos de criminosos mandados e financiados por quem quer suas terras, se assemelha ao extermínio dos jovens homens pretos nas guerras na periferia. A situação piorou na floresta e na cidade com os desmandos e a ação facilitadora do governo Bolsonaro. Os criminosos, em todos os lugares, estão mais armados e mais abusados.

Os garimpeiros dizem que foram para aquelas terras porque o governo deixou. A onda Bolsonaro não provocou apenas aumento da violência, do desmatamento e da garimpagem. Também elegeu muitos prefeitos e vários governadores de extrema-direita por conveniência e associados a esses empreendimentos predatórios.

Os amigos

O documentário mostra evidências inéditas e chocantes do assassinato de Bruno e Dom, que continua impune. Registra depoimentos comoventes de companheiros do indigenista, que continuam seu trabalho, entre eles Orlando Possuelo e Carlos Travassos.

Orlando é filho de Sidney Possuelo, da linhagem de indigenistas formada pelos irmãos Villas Boas, daí o seu nome. Já na adolescência, embrenhou-se na floresta com o pai, que presidiu a Funai e prestou muitos serviços à causa indígena. Foi ele que comandou a primeira desintrusão da massa de garimpeiros que ocupava a terra Yanomami, em 1991.

Carlos Travassos tem o combate pelas causas coletivas e a resistência à opressão no DNA. É filho de Luís Travassos, herói da resistência contra a ditadura militar, presidente da UNE, que foi preso no icônico congresso dos estudantes em Ibiúna, em 12 de outubro de 1968 e banido do Brasil em 1969. O Congresso de Ibiúna, aliás, é objeto do documentário do mestre deste gênero no Brasil, Sílvio Tendler. A mãe de Carlos, é Marijane Lisboa, socióloga dedicada a estudar e disseminar o socioambientalismo, sempre umbilicalmente ligado aos direitos humanos. Aos 42 anos de idade, Carlos já tem uma longa história de dedicação aos povos indígenas e, em particular, aos povos isolados.

Beto Marubo, outro personagem central do filme, é um dos criadores da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari, Univaja, e da equipe de vigilância indígena. Ele conta como o trabalho de Bruno transcendeu o cumprimento da missão de que era encarregado como funcionário da Funai. Perseguido pelo governo Bolsonaro, licenciou-se e juntou-se à Univaja a convite de Beto. Forjou-se uma amizade fraternal, entre o não-indígena que tinha a alma na floresta e o indígena que sai para as cidades para ser porta-voz dos povos de seu Vale. Vê-se como se aliaram para proteger povos com os quais não se relacionam, os isolados do Vale.

O doc de Sonia Bridi e Paulo Zero revela duas redes antagônicas, a rede do crime, que avançou muito com a omissão conivente e o encorajamento do governo Bolsonaro e a rede solidária que une os povos do Vale e os indigenistas, que não se atemorizam com as ameaças, nem perdem o ânimo com a tristeza imensa de perder um companheiro da qualidade de Bruno Pereira e um porta-voz global como Dom Phillips.

Eles ouvem mais do que nós

Escute: a terra foi rasgada, documentário de Cassandra Mello e Fred Rahal, com produção da antropóloga Luisa Molina e dos jornalistas Bruno Weis e Roberto Almeida, do ISA, Instituto Socioambiental, desloca-se para outro território e põe a câmera na frente dos indígenas para contar mais uma história de resistência e união. Seu lançamento encontrou o espaço perfeito, a Mostra Ecofalante, já tradicional, na sua 12ª edição, que divulga anualmente os melhores documentários ambientais de todo o mundo. É uma importante reunião do ambientalismo e do filme documentário, um gênero de muita tradição e que tem pouca acolhida nas casas tradicionais. Hoje, felizmente, as principais plataformas de streaming têm uma seção para filmes do gênero.

A terra foi rasgada, conta como e por quê se formou a histórica e inédita aliança entre três povos. Os Yanomami, cuja terra fica na porção norte da floresta amazônica, no vale formado pelos rios Orinoco e Amazonas, vizinha aos estados do Amazonas e Roraima. Os Munduruku, cujo território é o vale do Tapajós, vizinho a sudoeste do estado do Pará, a leste do estado do Amazonas e ao norte do estado do Mato Grosso. O Mebêngôkre, que chamamos de Kayapó, cujo território é na região do rio Xingu, vizinho a norte do Mato Grosso e a sul do estado do Pará. Eles estão longe uns dos outros e, no passado, havia forte hostilidade entre os Mebêngôkre e os Munduruku. Mas decidiram se aliar para combater o maior e pior inimigo comum, os invasores de terra e os garimpeiros.

Sertanejo das Minas, aprendi a amar os rios, as veredas, a mata. Mas não as vejo, nem escuto como os seus originários. Eles vivem uma união, quase simbiose, com a floresta, inexplicável para nós. Eles escutam a terra ser rasgada ao longe, a motosserra desmatar a quilômetros, o correntão devastando muito ao longe. E sabem que podem chegar até eles. Por isso se uniram.

Interpreto o título deste documentário de duas maneiras. Primeiro, como um alerta, um chamado de atenção, "brasileiros, escutem, nossa terra foi rasgada". Segundo, um chamado a aprender a escutar com eles, "escute a terra ser rasgada". Nas duas interpretações, define-se o mesmo lugar de fala. O documentário, seguindo na trilha do cinema-verdade, da câmera-testemunha, põe a câmera e o microfone à disposição para que os indígenas contem sua saga. O que sofrem, como sofrem, o que os anima e alegra, e por que se convenceram a se unir para resistir ao invasor.

É quase um recuo até a luta ancestral contra os primeiros invasores. Por isso a demarcação de suas terras é parte da defesa, mas se o estado não as proteger, elas continuarão a ser usurpadas e destruídas por não-indígenas sem escrúpulos e incapazes de ouvir. De novo, não é para eles que escrevo. É para os que querem escutar.

Eles falam o que precisamos ouvir

O documentário vai captando os que eles falam. A conversa entre eles para persuadir os ainda indecisos da necessidade da união e da luta. A reminiscência sobre como chegaram até ali. Temos que ouvi-los sem entendê-los porque falam em suas línguas. Entendemos o que dizem na expressão de seus rostos e nas legendas.

Somos um país em que se fala aproximadamente 150 línguas mais uma, o português. Talvez mais de 151 línguas, pois há povos dos quais nada sabemos, porque estão isolados por vontade própria. Não entendemos as línguas dos indígenas, mas podemos perceber que há conceitos nossos que violentam suas terras e vidas, para os quais não têm palavras. Podemos entender em suas falas apenas os nossos conceitos, "garimpeiro", "madeireiro".

Há momentos de discursos orgulhosos, por exemplo, das mulheres contando como os homens de seus povos aceitaram que se tornassem liderança, adaptando seus costumes às novas circunstâncias. É o caso de Alesandra Korap Munduruku, liderança que já é histórica na luta indígena.

O documentário registra a troca geracional. Uma prova de que os indígenas não vivem parados no tempo, como imaginam seus inimigos do lado de cá do país. A liderança se renova para se juntar às já históricas. O filme mostra filhos e filhas de líderes que assumem que também se tornaram lideranças.

Davi Kopenawa, o icônico xamã Yanomami, lembra que entre eles não pode haver "qualquer tipo de individualismo, pois temos o mesmo sangue, o mesmo rio, a mesma floresta".

A jovem O-É Payakan, transborda de sabedoria e sentimento, ao lembrar, em ótimo português, a morte de seu pai Bep’kororoti Payakan, conhecido entre nós como Paulinho Paiakan, morto pela Covid-19. Uma liderança histórica que lutou contra a absurda construção da inútil hidrelétrica de Belo Monte, que destruiu muito para produzir muito pouca energia. O-É Payakan sucedeu ao pai na chefia da sua aldeia e explica o significado maior da morte do pai e da terra para eles.

"Eu perdi meu pai. Hoje, meu pai já se misturou com o território. Então, hoje, a aldeia Krenhyedjá, ela é meu pai. O corpo dele, a alma dele faz parte da terra. Assim como meus antepassados estão no território, eles são parte do território." Perder a floresta significa muito mais do que perder a casa ou a terra para nós não-indígenas. É se perder, perder a alma coletiva, seu alfa e seu ômega. O Yanomami Davi Kopenawa também fala dessa aliança umbilical com a floresta. "Se a floresta queimar, minha pele também fica enrugada. Se a floresta envelhecer, eu também envelheço."

Há depoimentos dolorosos de dor e desalento, como o de Noemia Yanomami. "Eu não estou contente. Minha floresta já acabou. Minha terra verdadeiramente acabou. A terra ficou mesmo estragada. A terra rasgou eles dizem com raiva. A terra foi rasgada." Termina com um suspiro doído de desalento. Ela fala "terra rasgou" em português. Não tem o conceito.

Quem tiver ouvidos de escutar, saberá como pode ajudar, como não-indígena, a causa desses nossos irmãos de longe.

* Sérgio Abranches é sociólogo, cientista político e escritor. É autor de “Presidencialismo de coalizão”. 

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