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#DIREITOS HUMANOS

Os despossuídos na rua

O Brasil não conhece bem sua população de rua. O que se sabe é que ela é heterogênea, cresceu nos anos de desgoverno e pandemia. Sabe-se também que, definitivamente, não é caso de polícia e sim de política pública

Sérgio Abranches, para Headline Ideias
#DIREITOS HUMANOS26 de jul. de 237 min de leitura
Moradores de rua arrumando suas barracas no centro da cidade de São Paulo em fevereiro de 2022. Foto: Nelson Almeida/AFP
Sérgio Abranches, para Headline Ideias26 de jul. de 237 min de leitura

Acompanho há muito tempo as atitudes de governos com as populações de rua. Quando escrevia um livro sobre pobreza no Brasil, lá pelos anos 1980, lembro de uma conversa com Betinho, o irmão do Henfil, sociólogo que criou muita coisa, inclusive o mais antigo e bem sucedido programa de combate à fome. Betinho havia realizado uma pesquisa com a população de rua do Rio de Janeiro. Descobriu que ela representava um mosaico de situações e não apenas o que as mentes preconceituosas imaginavam, que são drogados, alcoólatras e doentes mentais. Estes, são uma parte, claro, dessa população, mas não toda ela.

Nos idos dos anos 1980, eram 1/3 da população de rua. Havia, naquela época, por exemplo, um contingente significativo de catadores de papel que forneciam para a indústria. Precisavam ficar na rua para poderem recolher o papel e papelão, colocá-los nos grandes carros de mão e levar para o local de entrega, antes que a cidade acordasse e o trânsito tornasse difícil e mais perigosa sua tarefa. A indústria, que dependia deles para operar, jamais se sentiu-se socialmente responsável por eles. Poderia ter construído abrigos decentes para passarem a noite, tomar banho e descansar.

Em muitos aspectos, a situação não mudou muito. Pesquisa realizada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, em 2008, mostrou que 35,5% da população nas ruas nelas estavam por causa do alcoolismo e de drogas. Mas praticamente 30% estavam desempregados e portanto destituídos de meios para pagar uma moradia. Uma outra terça parte, 29,1%, foram para a rua por problemas familiares.

Em nenhuma dessas ocasiões, a população de rua era problema de polícia. Mesmo os alcoólatras e drogados deveriam ser sujeitos de uma política pública de reabilitação, moradia social e apoio psicológico. Os desempregados e despejados na rua por falta de condições são vítimas das quedas cíclicas da atividade econômica combinadas à deficiência da rede de proteção social e do seguro desemprego, que só cobre trabalhadores formais.

A carteira de trabalho está se tornando um fator de exclusão, uma vez que a maior parte da população empregada é informal e não tem acesso aos benefícios a ela associados. Uma clara indicação de que uma rede de proteção social universal, descolada da carteira de trabalho, é provavelmente o único caminho para manter as pessoas acima da linha de pobreza em cenários econômicos adversos.

O que é possível dizer com alguma segurança é que se trata de uma população heterogênea, na qual há maioria de negros (pretos e pardos), o que aumenta o preconceito contra ela, sua invisibilidade e a demanda para que seja removida das ruas a qualquer custo. A maior parte das ações e reações das pessoas ao povo da rua nasce mais de noções preconcebidas do que de dados efetivos.

Pesquisa da Prefeitura de São Paulo, no final de 2021, encontrou esse mesmo perfil para população de rua: heterogênea, tendo em comum a situação de extrema pobreza, a fragilidade ou interrupção dos vínculos familiares. A maioria busca na rua o sustento perdido.

Outras características dessa população também persistem no tempo, é constituída na maioria por homens, na faixa dos 40 anos, negros. No levantamento paulistano, a maioria nasceu no estado, 43% não trabalha e 34% vive de atividades informais. Perto de 93% dos entrevistados são alfabetizados, 22% concluíram o ensino médio e quase 5% terminaram uma faculdade. Mais de 70% estão nas ruas há mais de 2 anos. Levantamento da Secretaria Municipal de Assistência Social de Vitória encontrou quadro semelhante. O quadro de outras capitais não deve ser muito diferente.

É fácil ver que uma parte dessa população acabou na rua durante a pandemia e com a crise econômica que a ela se seguiu. Na ausência absoluta de proteção social de um governo truculento como o de Bolsonaro, mergulharam inapelavelmente na miséria e terminaram nas ruas.

Pessoas em situação de vulnerabilidade na área central de Brasília durante o jogo Brasil x Croácia pela copa do mundo. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Nos anos recentes, de desgoverno e desprezo pelo outro, um presidente totalmente avesso ao campo social das políticas e completamente inepto e desinteressado para lidar com crises sociais, houve mudanças importantes na composição da população de rua, em parte capturada na pesquisa da prefeitura de São Paulo.

Muitas reportagens revelaram a presença de pessoas oriundas da classe média e arruinadas pela crise que lhes tirou não só o emprego mas todos os meios de manter sua residência. Não tiveram alternativa se não a solução desesperada de ir para a rua, não para protestar, mas para dormir e mendigar um prato de comida.

O Brasil não conhece a população de rua, para valer. Já passou da hora de o IBGE fazer levantamentos sistemáticos sobre ela para informar políticas públicas adequadas. Talvez um anexo da PNAD contínua reduzisse nossa ignorância

Os dados que se tem são indícios. Não se pode compará-los a outros, seja no tempo, seja entre cidades porque são metodologias muito diferentes. Não temos conhecimento efetivo e fidedigno do perfil de nossas populações de rua, as especificidades que elas adquirem em diferentes tipos de cidade, seu tamanho real nos planos nacional, estadual e municipal.

Nenhum aspecto da população de rua é questão de polícia ou do uso da força. Betinho descobriu em sua pesquisa que uma parcela desse povo não quer sair da rua. Em alguns casos porque não se adaptariam à vida entre quatro paredes. Gabeira fez um programa, certa vez, com andarilhos, não necessariamente incapacitados de sair das estradas, mas que preferiam essa espécie de nomadismo à vida caseira.

A grande maioria de pessoas em situação de rua, porém, pode ser reconduzida à vida convencional, desde que tenha trabalho — ou bolsa família e moradia social — assistência psicossocial e acesso à moradia. O Brasil tem problema secular de insuficiência de políticas habitacionais. O conceito de habitação social nunca ganhou tração entre nós.

As políticas urbanas são hostis às gentes que vivem na rua, seja deliberadamente, seja porque elas são invisíveis aos planejadores. A decisão do ministro Alexandre de Moraes, proibindo a retirada forçosa das pessoas que estão em situação de rua e o recolhimento à força de seus pertencentes tem muita importância. Já passou da hora de termos políticas efetivas para problemas crônicos que outros países souberam resolver.

O fato de que o crack e outras drogas sintéticas baratas passaram a infelicitar parte dessas pessoas não as torna questão de polícia. O tráfico sim, o porte para uso e o consumo, não. Aliás está na hora de o Supremo Tribunal Federal terminar o julgamento que descriminalizará o porte de drogas para consumo pessoal.

É estarrecedor que, no ano de 2023, um ministro da Suprema Corte tenha que mandar governos estaduais, do Distrito Federal e municipais observar as diretrizes do decreto 7053 de 23 de dezembro de 2009, que criou a Política Nacional para a População em Situação de Rua. Política vazia, diga-se de passagem, porque desde então, o contigente de pessoas na rua só aumentou.

Em boa hora, também, o ministro Alexandre de Moraes deu prazo de 120 dias para que o governo federal defina um plano de ação e monitoramento que permita formular uma política nacional para as pessoas em situação de rua. Se há um governo capacitado para tomar esta decisão do ministro da Suprema Corte como incentivo para enfrentar de fato este quadro social crônico, agravado por seu antecessor, é o governo Lula.

Espero que atenda à determinação e crie uma força-tarefa com todos os ministérios que têm a ver com a questão e transforme o que vem sendo questão de polícia ou puro descaso em caso sério de política pública.


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