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A agenda do adiamento
O governo começa a tomar forma com a aprovação do arcabouço fiscal e a boa recepção no Congresso. Com a Lei de Diretrizes Orçamentárias, o governo mostrará suas escolhas
Sérgio Abranches, para Headline IdeiasCom a aprovação do arcabouço fiscal pelo presidente Lula e sua apresentação em detalhe aos presidentes da Câmara e do Senado e aos líderes dos partidos governistas e de oposição, Lula arbitrou a disputa interna entre ala política que queria desidratar o projeto e disputar espaço de decisão com Haddad. Uma vez sanadas as dúvidas do presidente com relação ao conteúdo da nova ferramenta de política fiscal e seu impacto sobre educação e saúde, Lula mostrou que Haddad tem o comando da política macroeconômica.
Não era uma discussão meramente técnica. Era uma disputa de território, por espaço nas decisões macroeconômica. Um excesso de intervenção política afetaria a qualidade da gestão macroeconômica e impediria que ela alcançasse os resultados desejados. A arbitragem de Lula impediu que isto acontecesse.
A proposta aprovada não é tímida. Ao contrário, tem metas ambiciosas. Propõe zerar o déficit em 2024, já obter superávit primário de 0,5% do PIB, em 2025 e de 1%, em 2026. Significa que haverá um mecanismo de contenção de gastos para que a despesa cresça menos do que a receita. O arcabouço prevê também um mecanismo de ajuste caso não se atinja a meta prevista e outro para evitar que ele tenha um viés pró-cíclico. Ou seja, que evite o aumento do gasto na expansão do PIB e sua queda nas desacelerações. O objetivo é poupar na expansão, para gastar mais na retração.
Arcabouço quase aprovado
Fernando Haddad teve recepção muito positiva na apresentação dos detalhes do arcabouço aos presidentes e líderes do Congresso. O arcabouço é de fácil compreensão. O colégio de líderes tem muita força, particularmente na Câmara. É nele que se acerta a pauta de votações e a direção geral do voto. Se Haddad consegue convencer os líderes e obtiver consenso majoritário entre eles, é muito provável que o projeto de arcabouço passe sem muitos atropelos no plenário.
Como será um projeto de lei complementar, ele precisará obter maioria absoluta. Em números, 257 votos na Câmara, e 41 no Senado. Os presidentes das duas Casas se comprometeram a escolher relatores com bom trânsito e boa compreensão técnica para o projeto de lei complementar regulamentando o arcabouço fiscal.
A novela do arcabouço fiscal, na verdade, uma minissérie, teve seu penúltimo capítulo preservando a posição de Haddad como responsável pela política macroeconômica. Seu capítulo final se dará no Legislativo, em mais uma ou duas semanas e exigirá boa articulação dos ministros Alexandre Padilha, da Articulação Política, e Fernando Haddad, da Fazenda. Um impasse sobre o arcabouço fiscal teria efeitos muito negativos para a economia, com impacto também na política. A deterioração econômica rebateria na aprovação do presidente pela população, reduzindo sua popularidade e dificultaria o manejo, já bastante difícil, da coalizão no Congresso para formar as maiorias necessárias.
A ministra do Planejamento, Simone Tebet, disse que sua equipe cooperou com a visão orçamentária e que o arcabouço é crível, sustentável e transparente. Disse, também, que foi formulado de modo a compatibilizar a responsabilidade fiscal com o atendimento das necessidades sociais. O objetivo não é cortar gastos, é promover a sustentabilidade fiscal permitindo a reparação social.
Confronto entre as Casas do Legislativo
O outro impasse que poderia prejudicar o bom andamento do governo, a queda de braço entre os presidentes da Câmara e do Senado sobre a tramitação de medidas provisória. É um problema mais complicado. Não se trata apenas de disputa por espaço. É um conflito de poder, que resultou de uma mudança importante na composição da Câmara dos Deputados e do Senado, neste em menor escala. Essa mudança já ocorreu nas eleições de 2014, última na qual o PSDB ainda foi competitivo na busca da presidência, mas definhou no Congresso. Em 2018, o PSDB quase virou pó e todos os partidos que foram relevantes entre 1994 e 2014, perderam cadeiras no Congresso. O tamanho médio das bancadas caiu.
Nas eleições de 2022, ficou claro que o PSDB se tornara um partido secundário e o tamanho médio das bancadas caiu mais. Embora a fragmentação partidária tenha diminuído com a proibição de coligações nas eleições proporcionais e o aumento da cláusula de barreira, o poder se dispersou entre um maior número de bancadas médias, aumentando os pontos de veto no plenário.
O PT, embora tenha ficado com a maior bancada eleita, o tamanho das bancadas aumenta com adesões na janela de troca de partidos, ele perdeu a capacidade de ancorar uma coalizão majoritária. O PSDB sequer está entre os que têm uma bancada média. O partido deixou de ser um atrator da oposição funcional. Entre 1994 e 2018, PT e PSDB ancoravam a formação de governo e oposição no Congresso.
Fraqueza partidária é fonte de poder
A desancoragem das coalizões parlamentares aumentou o poder do presidentes das duas Casas. No governo Bolsonaro, o poder do presidente da Câmara foi exponenciado pela abdicação de Bolsonaro e pelo manejo do orçamento secreto. O poder do presidente do Senado, neste caso, era subsidiário, mas ele se beneficia, também, da falta de partidos capacitados a ancorar as coalizões do governo e da oposição. Com a determinação da inconstitucionalidade do orçamento secreto, Lira perdeu muito poder. Seu poder agora vem de sua capacidade de formação de maiorias ou ativar grupos de veto, para ajudar ou bloquear a passagem de projetos do governo. Poder que Rodrigo Pacheco também tem.
Uma anomalia determinada pelas emergências da pandemia deu mais poder a Lira e reduziu o de Pacheco, quando o exame das medidas provisórias deixou de se iniciar por comissões mistas especiais, com paridade de representação de Câmara e Senado. Passaram a ser inicialmente analisadas pela Câmara e, depois, seguiam para o Senado. O que ocorreu com muita frequência neste período, todo ele no governo Bolsonaro, foi que a Câmara só enviou as MPs para o Senado muito próximo da data final de aprovação, o que tornava a decisão dos deputados praticamente fato consumado.
Pacheco, agora, quer o retorno ao trâmite previsto na Constituição, que inicia o exame das MPs por comissões mistas paritárias, devolvendo ao presidente do Congresso, o próprio presidente do Senado, a prerrogativa de devolver medidas provisórias rejeitadas pelas comissões mistas. Pacheco negocia este conflito em vantagem, porque tem a Constituição a seu lado. Um impasse, se judicializado, levaria ao retorno à regra constitucional.
Lira sabe que não tem como impor sua vontade, de mudar a Constituição para separar o exame da MPs, que seriam alternativamente iniciados na Câmara e no Senado. Ao mesmo tempo, quer compensar o poder perdido com o fim do orçamento secreto. Diante de um Rodrigo Pacheco irredutível, propôs um compromisso: manter as comissões mistas, porém com 3 deputados para cada senador, dar prazos limites para decisão sobre as medidas provisórias pelas comissões bicamerais, pela Câmara e pelo Senado. Pacheco reagiu dizendo que sobre prazos limites há possibilidade de acordo. Mas, rejeita a mudança na composição das comissões. Ainda assim deverá levar a proposta aos líderes dos partidos no Senado. Estes, na primeira consulta, foram unânimes em apoiar a posição de Pacheco. Muitos dizem que, para eles, já está decidido.
O único acordo possível, mas pouco provável pelo que sei, seria aceitar a representação desigual nas comissões mistas, mas tomar os votos em separado. A aprovação precisaria, neste caso, da maioria dos votos de deputados e de senadores separadamente.
Executivo busca saída
O presidente Lula tentou influir na solução do impasse entre os dois, sem sucesso. Por isso, trabalhou por uma proposta alternativa. Aprovar no rito constitucional as MPs consideradas essenciais, como a que reestrutura o governo, que restabelece o voto de qualidade do governo no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), e as que determinam o retorno do Bolsa Família e do Minha Casa, Minha Vida. As demais seriam retiradas e retornariam ao Congresso como projetos de lei com urgência constitucional. Com esta decisão, Lula deixa de ter interesse investido na rusga entre os dois chefes do Legislativo.
O processo legislativo está no limiar da paralisia, porque, antes das MPs caducarem, elas trancam a pauta da Casa legislativa em que estiverem. Com o exame, por acordo, daquelas assinadas por Bolsonaro pelo rito adotado na pandemia e a retirada da maioria das assinadas por Lula, desaparece o risco de trancamento de pauta. A queda de braço por poder entre Câmara e Senado, começará a deixar de fazer sentido. Principalmente se Lula passar a enviar projetos de lei com regime de urgência, em lugar de MPs.
O impasse sobre as MPs terá uma consequência positiva. Forçará o governo a transformar em projetos de lei medidas que não atendiam às exigências constitucionais de relevância, urgência e emergência. É na verdade, um efeito não-antecipado positivo. As MPs têm sido usadas de modo abusivo pelos presidentes. A maioria das que viraram lei não atendiam às condições constitucionais e ainda continham provisões estranhas a seus objetos, os “jabutis”, que é, em tese inconstitucional.
* Sérgio Abranches é sociólogo, cientista político e escritor. É autor de “Presidencialismo de coalizão”.