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O vinho premiado da tecnocasa-grande

Vinícolas de prestígio que usam trabalho forçado mostram o que chamo de tecnocasa-grande e são o retrato do agro brasileiro: alta tecnologia na cabeça e pés na lama das práticas arcaicas

Sérgio Abranches, para Headline Ideias
#DIREITOS HUMANOS8 de mar. de 235 min de leitura
Alojamento onde ficavam trabalhadores resgatados de situação análoga à escravidão em Bento Gonçalves, RS. Foto: Daniel Marenco/ Headline
Sérgio Abranches, para Headline Ideias8 de mar. de 235 min de leitura

A Serra Gaúcha, Vale dos Vinhedos e Vale do Tuiuty, onde ficam as principais cidades da vinicultura avançada, como Bento Gonçalves, Garibaldi e Pinto Bandeira, tem alguns dos vinhos mais premiados do Brasil. O Vale dos Vinhedos é a única região brasileira com a classificação de Denominação de Origem (D.O.), abrangendo os municípios de Garibaldi, Bento Gonçalves e Monte Belo do Sul. O cultivo e o processamento do vinho no Vale D.O. deve seguir normas restritas que asseguram a qualidade final. Daí, saem os espumantes considerados entre os melhores do mundo, entre outros vinhos premiados.

O que não sabíamos é que na colheita das uvas eram usadas as práticas mais arcaicas possíveis, o trabalho forçado, com métodos coercitivos e repressivos, portanto análogo à escravidão.

A série de matérias de Andrei Neto, com fotos de Daniel Marenco, para este Headline, mostra evidências incontestáveis de que algumas das principais vinícolas localizadas no Vale dos Vinhedos D.O., a Aurora, a Salton e a Garibaldi, usavam trabalhadores terceirizados submetidos a esses métodos repressivos na colheita.

Uma das matérias revela, também, que os trabalhadores em cativeiro eram usados no "apanha frango" nas granjas da Serra Gaúcha. A produção de frango de corte é outro segmento que transformou o Brasil em segundo maior produtor e exportador mundial, com avanços tecnológicos, mercadológicos e logísticos. Essas granjas mergulhadas na lama do trabalho arcaico são fornecedoras da BR Foods, uma das maiores empresas globais de alimentos, presente em 127 países e detentora de grandes marcas, como Sadia.

Leia a reportagem:

A essa combinação de alta tecnologia e práticas sociais anacrônicas é que chamo de tecnocasa-grande. A modernização tecnológica, a globalização e a digitalização se fundem com a mentalidade da casa-grande patriarcal e escravocrata e com as práticas da lavoura arcaica. Este agro de comportamento social fóssil tende ao reacionarismo político. Não por acaso, se dependesse do Vale dos Vinhedos, Bolsonaro teria sido reeleito presidente no primeiro turno. Ele obteve 69,12% dos votos em Bento Gonçalves; 68,27% em Garibaldi; 76,20% em Monte Belo do Sul; e 75,62% em Pinto Bandeira.

A busca por inovações para a melhoria dos vinhedos e da produção de vinhos ganhou impulso nos anos 2000. No cultivo da uva, passaram a ser usadas mudas certificadas e manejo mais adequado. Na produção do vinho, a modernização tecnológica exigiu a aquisição de máquinas e equipamentos com inteligência artificial. A contratação de enólogos tecnicamente capacitados melhorou o controle de qualidade. Hoje a produção vinícola recorre à biologia molecular, tecnologias de informação, sensoriamento remoto, geoprocessamento e zoneamento, como os melhores produtores mundiais.

O high-tech com o arcaico

A revista Adega, que tem um guia com o ranking dos melhores vinhos brasileiros, destacou, em matéria de 2015, o trabalho de duas vinícolas para obter ganhos de qualidade com tecnologias avançadas, a Aurora, em Bento Gonçalves, e a Garibaldi, na cidade de mesmo nome. Ambas estão entre as que usam trabalho forçado na colheita das uvas.

Matéria de Carolina Barbosa para a Veja Rio, de junho de 2021, fala da melhoria do marketing e da logística para ampliar as vendas e da importância da melhoria de qualidade do vinho para alcançar mercados consumidores mais sofisticados. Em matéria de Leonardo Portela, de junho de 2022, o jornal digital gaúcho GZH afirmava que o vinho nacional vivia "o melhor momento em duas décadas". Agora sabemos que o melhor momento estava ancorado nas piores práticas.

Esse mesmo modelo, de mistura do high-tech com o arcaico, está disseminado pelo agro brasileiro. Avanço genético no gado de leite e de corte, associado a terra ilegalmente ocupada, desmatamento, violência e trabalho forçado. Esta semana circulou a notícia de 32 homens resgatados de trabalho forçado em canaviais de fazenda em Pirangi, a 380 km da capital São Paulo, que fornecia para a produção de açúcar.

trabalho escravo Bento Gonçalves
Empresa que explorava mão de obra em situação análoga à escravidão prestava serviço para vinícolas e também BRF. Foto: Daniel Marenco/ Headline

A terceirização de força de trabalho e de parte da produção é um recurso utilizado para reduzir custos em trabalho temporário ou sazonal, como colheitas, e na produção de matérias-primas. Mas é também usado para terceirizar a culpa pelas más práticas empresariais. Em geral, os contratantes das empresas de aluguel de trabalho e compradores de matérias-primas sujas de lama arcaica alegam desconhecimento das condições desses trabalhadores ou da produção. O ouro ilegal, cheio de sangue indígena, é comprado na "boa fé" e chega nas melhores joalherias, no mercado financeiro e na indústria high-tech.

Quando se entrevista os defensores do "agro moderno", eles recorrem à tecnologia avançada, à qualidade da produção, ao sucesso comercial e à importância do produto agroindustrial para a economia brasileira. As más práticas são sempre atribuídas a uma minoria. Mas não é o que indicam a pauta do atraso promovida pela bancada ruralista no Congresso, nem a frequência com que aparece a tecnocasa-grande entre as empresas de "excelência" da agroindústria.

Se o Brasil não eliminar esse casamento entre o high-tech e a mentalidade arcaica, de casa-grande, jamais será um país desenvolvido e uma democracia avançada. A presença desses elementos anacrônicos, remanescentes da colônia, na sociedade contemporânea brasileira será sempre um fator impulsionador do autoritarismo e do desrespeito aos direitos humanos. É uma obrigação moral civilizatória desatrelar a tecnocasa-grande da sociedade e da economia brasileira.

* Sérgio Abranches é sociólogo, cientista político e escritor. É autor de “Presidencialismo de coalizão”. 

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