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O discurso da volta

O discurso do presidente Lula na abertura da 78a sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas marcou a volta oficial do Brasil ao convívio multilateral.

Sérgio Abranches , para o Headline Ideias
#DIPLOMACIA20 de set. de 2310 min de leitura
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva chega para a 78ª sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, na sede da ONU, em 19 de setembro de 2023, em Nova York. Foto: Adam Gray/Getty Images/AFP
Sérgio Abranches , para o Headline Ideias20 de set. de 2310 min de leitura

A participação do Brasil na abertura da 78a sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas foi marcada por um sólido conjunto de eventos que mostra o retorno do Brasil ao convívio multilateral com uma voz que merece atenção e respeito.

Nas quatro sessões anteriores, a presença do Brasil nos fóruns globais foi só escárnio e deboche. Perdemos nossa reputação e nosso poder brando (soft power) no primeiro ano de Bolsonaro no exterior.

O evento público principal foi, claro, o discurso de abertura do presidente brasileiro. É tradição, mas é o momento em que o Brasil fala com o mundo. Quatro anos de presidente dizendo absurdos, tolices e ofensas nos causaram um dano tremendo. O sólido discurso marcou a volta oficial do Brasil ao convívio multilateral.

Os acenos das principais lideranças mundiais a Lula se devem à sua reputação internacional e, também, à repulsa global a Bolsonaro. O Brasil já é grande demais para ter sido tão "desrepresentado" nos principais circuitos globais por quatro longos anos.

O fato de a Assembleia Geral ter sido desprezada pelos chefes de Estado de França, Reino Unido e China, membros permanentes do Conselho de Segurança, não diminui a sua importância. Bastavam para lhe dar projeção estratégica a presença de Joe Biden, falando pelos Estados Unidos, o mais poderoso membro permanente do Ocidente no Conselho de Segurança da ONU, e a volta a sério do Brasil ao cenário global. Em tempo: O autocrata russo Vladmir Putin não compareceu para não ser preso. A Rússia é um dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, portanto, com poder de veto. Daí o crescimento do apoio à sua reforma. Virou o Conselho do impasse e não da resolução de conflitos.

O discurso do presidente brasileiro foi acertado no tom, no conteúdo, na ordenação dos temas e na forma como ele o leu. Foi a melhor leitura de Lula que me lembre, usando teleprompter, em eventos internacionais. A ênfase na desigualdade foi acertada. O compromisso climático foi o esperado. A reiteração do apoio brasileiro ao multilateralismo foi importante, após o governo antecessor o ter rejeitado.

A defesa da reforma da ONU, em particular de seu Conselho de Segurança, da Organização Mundial do Comércio e das instituições de Bretton Woods, o FMI e o Banco Mundial, empresta a voz do Brasil para a explicitação de uma obviedade. São instituições defasadas no tempo, superadas pela história que se seguiu ao final da Segunda Guerra e ao fim da Guerra Fria, com o colapso soviético.

A reforma não acontecerá tão cedo, mas é realmente necessária. Precisamos de um novo sistema de governança global. O presidente Biden também se referiu ao tema com apoiamento. Embora certamente possam divergir no detalhamento do desenho dessa nova governança, a convergência de Brasil e EUA sobre a necessidade de discutir e negociar o tema é importante em si.

As referências ao Acordo de Paris e ao Marco Global da Biodiversidade foram muito apropriadas.

Antes da sessão, outro evento significativo marcou a volta do Brasil à convivência global. A ação conjunta dos ministros da Fazenda, Fernando Haddad, e do Meio Ambiente, Marina Silva, para lançamento dos Green Bonds, títulos verdes brasileiros. O encontro entre o condutor da política econômica e a condutora das políticas ambiental e climática, tem relevância internacional e nacional.

Haddad se encontrou com o Enviado Especial para o Clima, John Kerry, e foi uma conversa importante, na qual o ministro brasileiro apresentou ideias para o Brasil como produtor e exportador de energia limpa. Não só exportação direta de energia, mas também embutida em manufaturados.

Fiz algumas ressalvas a aspectos da proposta de Haddad e à incongruência entre a ideia de descarbonizar o Brasil e outras políticas do governo, muitas delas com prioridade no novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), em meu comentário de terça-feira na CBN. Mas concordo plenamente com a tese.

A ministra Marina Silva, que participou da Cúpula pelo Aumento da Ambição convocada pela ONU, anunciou novas metas para o Brasil e a correção no seu cálculo que foi deliberadamente adulterado pelo governo anterior. O objetivo central da Cúpula é conseguir que os países aumentem e antecipem seus compromissos e metas climáticas.

Desafinando

Ao defender, corretamente, ações mais efetivas de mitigação da mudança climática, Lula ressaltou algo que os cientistas vêm alertando ao mundo repetidamente. É preciso corrigir os rumos e mudar o modelo de altas taxas de emissões de gases de efeito estufa.

Lula desafina, porém, em duas referências. A primeira, ao tratar, com razão, do fato de que os países desenvolvidos se beneficiaram plenamente desse modelo de alto carbono para se desenvolver, ele recorreu ao princípio das responsabilidades comuns, mas diferenciadas. Este princípio é herança do Protocolo de Quito que separava as nações industrializadas, com tinham metas compulsórias, das demais nações, cujas obrigações eram voluntárias e deveriam se beneficiar do auxílio dos desenvolvidos para se adaptar à mudança climática já inevitável.

O Acordo de Paris superou este princípio. Pelo novo acordo, todos os países têm compromissos voluntários decorrentes de obrigação legal de registrá-los junto à Secretaria Executiva da Convenção do Clima das Nações Unidas. Os compromissos devem ser proporcionais à sua contribuição para a emissão dos gases estufa.

O Brasil, neste novo quadro, é um dos grandes emissores de carbono e está, portanto, entre os países que devem contribuir proporcionalmente. E não apenas por conta do desmatamento, também pelas emissões de nossa agricultura, dos transportes e da logística fortemente centrados em rodovias e veículos a diesel.

Também é imprecisa a afirmação de que as populações mais afetadas pelas perdas e danos causados pela mudança climática são as vulneráveis do Sul Global. Os que mais sofrem são os estados-ilha ameaçados de perder todo o seu território com a elevação das águas do mar. As nações africanas mais pobres, sobretudo da região do Sahel, estão entre as que mais padecem com a mudança do clima. São países que compõem o bloco dos países de baixa renda da ONU. Esses países não estão adequadamente representados na expressão Sul Global.

As populações mais pobres do chamado Sul Global e dos países desenvolvidos também sofrem mais do que suas populações mais ricas. O exemplo de New Orleans com o Katrina é exemplar. Os bairros pobres é que foram devastados e seus moradores não tinham suas casas seguradas, ao contrário dos habitantes dos bairros de classe média e alta, cujas perdas estavam majoritariamente cobertas por seguro.

É discutível a frase “nós, países em desenvolvimento, não queremos repetir esse modelo” de crescimento dos países desenvolvidos. O Brasil tem repetido o modelo e as políticas do PAC do terceiro governo Lula o repete em muitos pontos. O termos países em desenvolvimento englobaria o Brasil e até a China. O Brasil, para as Nações Unidas é um país de renda média e está fora de determinados benefícios destinados aos mais pobres.

A parte mais desafinada do discurso de Lula é aquela em que ele fala dos BRICS. Ao criticar a inoperância e os erros da governança econômica global — FMI, Banco Mundial e OMC —  conclui que “as bases de uma nova governança econômica não foram lançadas”.

Lula afirma, então, que “o BRICS surgiu na esteira desse imobilismo, e constitui uma plataforma estratégica para promover a cooperação entre países emergentes”. É um exagero e não corresponde ao que esse grupo realmente é.

O BRICS é um ajuntamento arbitrário de países feito por um analista de mercado que considerou Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul como as nações emergentes que se juntariam ao mundo desenvolvido crescendo com rapidez. Os governos decidiram formalizá-lo e se tornou, na verdade, um polo de domínio chinês e, secundariamente, russo.

Mas, o pior foi Lula dizer que “a ampliação recente do grupo na Cúpula de Joanesburgo fortalece a luta por uma ordem que acomode a pluralidade econômica, geográfica e política do século 21”. Para um presidente que abriu seu discurso reconhecendo o valor da democracia e a necessidade de defendê-la, esta frase desafina o discurso para valer.

O BRICS já era um conjunto pouco democrático. Rússia é uma tirania personalista. A China é uma tirania de partido único. Que países foram adicionados ao BRICS? Apenas um país democrático, em crise, mas democrático, a Argentina. Os demais todos estão entre as piores tiranias do mundo.

A Etiópia é um regime autoritário, no qual a transição para a democracia não tem dado certo. O Egito e o Irã são ditaduras. A Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos são monarquias tirânicas.

A Arábia Saudita é uma tirania sanguinária, como também, a ditadura russa de Putin. Vários desses países tiranizam as mulheres. Esse não é o tipo de pluralidade que se celebre.

Lula foi criticado por não censurar diretamente a Rússia e Putin pela invasão da Ucrânia. Lula não censurou mesmo a Rússia por esses atos de agressão. Mas evoluiu mais um pouco em sua posição sobre a guerra na Ucrânia. Ele disse que “a guerra na Ucrânia escancara nossa incapacidade coletiva de fazer prevalecer os propósitos e princípios da Carta da ONU”. É muito pouco. Não disse que princípios são esses.

O princípio central da Carta é a convivência pacífica entre os membros em igualdade e soberania. Está lá também a solução pacífica dos conflitos. O item 4 do artigo segundo dos propósitos e princípios diz “todos os membros devem evitar a ameaça do uso da força em suas relações internacionais contra a integridade territorial e a independência política de qualquer estado”.

A diplomacia brasileira sabe que invocar os princípios da Carta da ONU implica em se opor ao ato de invasão da Rússia. É insuficiente, mas a posição está em evolução. Já foi bem pior.

As desafinadas não invalidam, de modo algum, o discurso da volta do Brasil ao convívio multilateral, nem reduzem a importância da presença de Lula na abertura da 79a sessão da Assembleia Geral da ONU.

Chefes de estado e representantes de governo do mundo participam da 78ª sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, em meio a múltiplas crises globais, como a guerra da Rússia contra a Ucrânia e a emergência climática. Foto: Ricardo Stuckert/Divulgação da Presidência da República
Chefes de estado e representantes de governo do mundo participam da 78ª sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, em meio a múltiplas crises globais, como a guerra da Rússia contra a Ucrânia e a emergência climática. Foto: Ricardo Stuckert/Divulgação da Presidência da República

Convergindo

Houve convergência dos discursos de Lula e Biden em questões importantes. A principal, que se concretizou no lançamento conjunto de iniciativa global para restabelecer direitos e garantias aos trabalhadores, evitar racismo, discriminação de gênero ou opção de gênero. Ela deve ser apresentada ao G20 sob a presidência do Brasil para adesão dos países.

A bilateral entre os dois presidentes foi muito amistosa e concreta. Pode-se avaliar a cordialidade e a importância pela forma como Lula celebrou o encontro como “mais do que uma bilateral é um renascer de um novo tempo na relação entre os Estados Unidos e o Brasil”.

Os dois concordaram bastante sobre a defesa dos trabalhadores, como políticos de orientação trabalhista ou social democrática, e sobre democracia, como dois presidentes que venceram adversários da extrema direita. A conversa dos dois fixou-se bastante na cooperação entre os países no campo do trabalho e da mudança climática.

O acordo sobre direitos dos trabalhadores foi um ato concreto, que Lula chamou de protocolo, que terá repercussões adicionais, ao ser examinado em outros âmbitos multilaterais.

Biden voltou a falar nos US$ 500 milhões para o Fundo da Amazônia, mas a liberação depende do Congresso sobre o qual ele, como Lula, não tem controle da maioria. Foi mais um episódio relevante desse retorno do Brasil e da reconquista de seu soft power.

PS. Após o encontro, importante, entre os presidentes do Brasil e da Ucrânia, Volodymyr Zelenski, Lula deu um passo além na posição sobre a guerra. Ao defender com bons argumentos a negociação da paz, Lula disse que seria para que nunca mais haja uma ocupação territorial como a russa.

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