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O calor que nos inquieta

Cientistas alertam para o aquecimento anômalo do Atlântico Norte. É um sério problema. Estamos nos aproximando perigosamente da zona de não retorno e a emissão de gases-estufa continua a subir

Sérgio Abranches , para Headline Ideias
#MEIO AMBIENTE28 de jun. de 2311 min de leitura
Turistas se refrescam durante uma onda de calor, em Córdoba, em 27 de abril de 2023. Uma onda de calor excepcionalmente precoce na Espanha atingida pela seca deve atingir temperaturas esperadas para quebrar os recordes de abril no sul do país. Desde 24 de abril, a Espanha foi envolvida por uma massa de ar quente e seco do norte da África que elevou as temperaturas a "níveis normalmente vistos no verão e excepcionalmente altos para esta época do ano", disse a agência meteorológica estatal espanhola AEMET. Foto: Jorge Guerrero/AFP
Sérgio Abranches , para Headline Ideias28 de jun. de 2311 min de leitura

Desde que comecei a escrever sobre mudança climática minha timeline no Twitter tem muitos climatologistas. Alguns deles, muito assíduos, dão notícia do estado das artes da ciência do clima, quase dia a dia. Um dos mais presentes é o climatologista, Michael Mann, hoje na universidade da Pennsylvania, onde dirige o Centro para a Ciência, Sustentabilidade e Mídia. É o autor do icônico gráfico apelidado de "hockey stick" por se parecer com um taco de hockey, que mostra o aumento da temperatura global no último milênio. Tendo sofrido forte ataque dos negacionistas, checado e "rechecado" por seus pares, resistiu a tudo, e o gráfico continua referencial e emblemático.

Quando Michael Mann insiste numa determinada tendência, eu levo a sério e tento ler os cientistas até o limite da minha compreensão. Recentemente, mais do que interessar, Michael Mann me inquietou. Chamou atenção para as temperaturas anômalas dos oceanos, principalmente do Atlântico Norte, e suas consequências.

Fui seguindo o fio de seus tuítes e recolhendo opiniões de numerosos cientistas sobre o aquecimento sem precedentes dos oceanos. A temperatura superficial do Atlântico Norte atingiu uma altura no termômetro nunca antes alcançada. Mann e seus colegas acham que tem a ver com o El Niño que está se formando e alguns dizem que pode ser o maior de todos.

Conversei com o climatologista brasileiro Carlos Nobre e ele me disse que o El Niño está se tornando mais frequente com o aquecimento global de causa humana, embora não necessariamente mais intenso. Mas, emendou, as observações recentes da meteorologia estão indicando que este será bem forte, se não o maior, um dos maiores que já se formaram. Michael Mann diz que este El Niño pode vir a causar níveis recordes de calor.

Na conversa com Carlos Nobre, para a nova temporada da série Entrevista, do Canal Futura, com o tema Brasil, tempo presente, ele me falou dos riscos associados à elevação continuada e acelerada da temperatura do Atlântico Norte. Disse que estão associados aos perigos que cercam a Amazônia e requerem mudança urgente no padrão de ações para zerar o desmatamento, reflorestar e estabelecer iniciativas que gerem renda para a população local com a floresta em pé.

Próximos ao ponto de não retorno

O aquecimento do Atlântico Norte aumenta o derretimento da calota de gelo da Groenlândia. O volume de água doce que cai no mar, além de elevar seu nível, reduz a salinidade do oceano. Esta, por sua vez, afeta gravemente as correntes marinhas que passam pela Groenlândia, com sérias repercussões climáticas globais. Um de seus efeitos é levar a corrente do Golfo, que já dá sinais de enfraquecimento, ao limiar do colapso. A corrente do Golfo debilitada afeta a AMOC, a Circulação de Revolvimento Meridional do Atlântico, que vai ficando mais lenta.

A desaceleração da AMOC, por seu lado, tem impacto sobre a ZCIT, Zona de Convergência Intertropical, considerada o sistema atmosférico mais importante na geração de precipitação nos trópicos. As temperaturas da superfície do oceano Atlântico afetam a frequência das chuvas e sua intensidade no Brasil, Índia, na região do Sahel na África, e no sudoeste dos Estados Unidos.

O aquecimento do Atlântico Norte já bateu todos os recordes de todos os anos com o El Niño ainda em formação. Surge a preocupação com o agravamento do cenário climático quando o El Niño estiver plenamente formado. Os cientistas temem que se ele vier muito forte o perigo de termos eventos climáticos muito extremos entre 2024 e 2025 mundo afora aumentará significativamente.

Este padrão de mudança climática, está aumentando a seca na Amazônia, diz Carlos Nobre. Uma parte importante dela está perdendo vegetação e adquirindo características de chuva e seca próximas às do Cerrado. Some-se o desmatamento descontrolado e as queimadas e temos a tempestade perfeita. A Amazônia é considerada um dos marcadores fundamentais da gravidade da mudança climática. Um tipping point. Se chegarmos a um ponto de degradação, savanização, como o chama Carlos Nobre, teremos passado um dos tipping points que apontam para o desastre climático.

O outro tipping point está no aquecimentos dos oceanos. Não é só o Atlântico Norte que está aquecendo perigosamente. Este ano, as temperaturas dos oceanos estão altas globalmente, em todos eles, embora no Atlântico Norte, a anomalia seja mais notável neste período. Os dados gerados pela NOAA, o braço oceanográfico e atmosférico da NASA, são impressionantes. O gráfico mostra que o ano de 2023 bate todos os outros e o mapa de calor é ainda mais assustador. A anomalia na temperatura global da superfície marítima, em 13 de junho, estava a 4,5 desvios-padrão da média global de referência.

gráfico da NOAA sobre temperatura global dos oceanos

A marcha da insensatez e o Complexo de Prometeu

Todos nós estamos vendo o clima mudar. Os povos que vivem em contato com a natureza e dela dependem, como os indígenas da Amazônia, ou os inuits das regiões árticas do Canadá, do Alasca e da Groenlândia, veem e sentem muito mais. Ainda assim, as emissões globais de gases estufa continuam a aumentar e nas reuniões multilaterais os governos persistem em se contentar com o mínimo denominador comum.

Barbara Tuchman escreveu um livro controverso, A marcha da insensatez. Embora ela não tenha oferecido os melhores casos para provar seu argumento, ele continua de pé. A marcha da insensatez consiste na manutenção persistente de cursos de ação, apesar de se mostrarem contraproducentes e contrários aos interesses de seus próprios executores.

A insensatez fica patente no desprezo de alternativas viáveis e mais compensadoras do que o padrão de desenvolvimento que se persegue a qualquer custo. Ela expressa a coalizão dominante de interesses econômicos que prefere manter a economia de alto carbono a aproveitar as oportunidades criadas pela alternativa economia de baixo carbono. É, como escreveu Barbara Tuchman, a ilusão da onipotência.

Eu chamei esta ilusão de Complexo de Prometeu em meu livro A era do imprevisto. A crença de que podemos controlar a natureza e submetê-la à nossa vontade é uma escolha, não uma sociopatia. Os limites da natureza se impõem por excesso, por causa das escolhas dominantes de ignorá-los. O que determina o resultado da relação ser humano/natureza são as articulações entre as transformações estruturais na sociedade e as escolhas das forças dominantes no Estado e no mercado.

Entre o colapso e um novo modo de ser

O colapso da biosfera tornou-se uma possibilidade real diante da aceleração da mudança climática. O mesmo se pode dizer do colapso da Amazônia, sua transformação em uma savana pobre, como tem alertado Carlos Nobre. Um novo estudo sobre como os tipping points mostra como, uma vez alcançados, podem acelerar e amplificar uns aos outros. Os autores deste estudo advertem que mais de um quinto dos ecossistemas do mundo, incluindo a floresta amazônica, correm o risco de ruptura catastrófica no espaço vital de uma geração humana. Um dos autores principais, Simon Willcock da Rothamsted Research, disse que “podemos realisticamente ser a última geração a ver a Amazônia como ela é".

A reação comum a estes avisos catastróficos é a negação ou o desalento, tipo estamos perdidos e nada mais há a fazer. Willcock, porém dá razões para que não caiamos em nenhuma dessas duas atitudes. O estudo mostra que pequenas mudanças podem ter grande impacto positivo e mudanças reais na mesma direção, levando-nos mais próximo de um cenário de baixo carbono, podem reverter o quadro e afastar-nos do ponto de não retorno. A mesma lógica que leva ao colapso pode se inverter, diz ele. Se adotamos ações positivas para a descarbonização, podemos conseguir rápida recuperação. Mas temos que mudar nossa lógica e nosso modo mais rápido, porque o cenário negativo está avançando mais rapidamente.

Michael Mann acredita na reversão do cenário catastrófico. Recentemente tuitou que para estabilizar as temperaturas globais precisamos descarbonizar rapidamente a economia global e reduzir todos os outros gases-estufa gerados pela ação humana. Cada redução do efeito positivo dos aerossóis será compensado pela redução do carbono, metano e outros gases-estufa. "Ao final é tudo sobre emissões de carbono."

Adeus Paris?

Este ano, a temperatura média está 1,5o C acima da média de referência. O Acordo de Paris tem como meta exatamente evitar aquecimento global superior a 1,5o C. A temperatura observada este ano não significa que já ultrapassamos a meta. Não é, portanto, a frustração do Acordo de Paris. Mas é um episódio indicativo de que estamos muito perto de jamais cumprir esta meta.

Estudo cientifico publicado na revista Science, em setembro de 2022, demonstra a importância deste limite de 1,5o C de aumento da temperatura média global. Seus autores mostram os riscos em que se encontram cinco dos tipping points mais significativos.

Analisaram as interações entre as calotas de gelo da Antártica Ocidental e da Groenlândia, a corrente do Golfo e a floresta amazônica. Concluem que as interações entre esses sistemas fundamentais do processo climático, todos fortemente afetados pelo aquecimento global, estão acelerando a trajetória rumo aos pontos de não retorno.

Os autores deste estudo não estão também profetizando o Armaggedon, "fazemos análise de risco", disse ao The Guardian a climatologista Ricarda Winkelmann, do Instituto de Pesquisa sobre Impactos Climáticos de Potsdam. "Nossos achados mostram que temos menos tempo para reduzir as emissões de gases-estufa para evitar esses processos de ruptura".

Carlos Nobre me disse o mesmo sobre a Amazônia. A floresta está mudando aceleradamente. Temos pouco tempo para zerar o desmatamento e começar a recuperação de parte da floresta que já destruímos, para evitar a sua savanização. Ainda é possível evitá-la.

A insensatez que nos ronda

O governo Lula representou um alento para a Amazônia e para o Cerrado. Para todos nossos biomas, na verdade. A volta de Marina Silva ao ministério do Meio Ambiente, a criação do ministério dos Povos Indígenas, a nomeação da liderança indígena Sonia Guajajara para comandá-lo e a nomeação de outra liderança indígena, Joenia Wapichana, para encabeçar a recuperação da Funai, foram decisões muito positivas para o ambiente e o clima. As operações mais efetivas e frequentes na Amazônia, na nova gestão, vão mostrar efeitos positivos no desmatamento em tempo real. Na terra Yanomami, já há desmatamento zero.

Lula faz um discurso durante um show 'Global Citizen' em Paris em 22 de junho de 2023. Foto: Anna Kurth/AFP
Lula faz um discurso durante um show 'Global Citizen' em Paris, em 22 de junho de 2023. Foto: Anna Kurth/AFP

Mas o governo Lula, infelizmente, revela contradições que podem tornar a política para a Amazônia contraproducente. A tentativa, não abandonada, da Petrobras de explorar petróleo na costa norte da Amazônia é uma cunha dos interesses fósseis na região. A discussão em torno de linhões de transmissão de energia elétrica, revalidação da licença de Belo Monte, e investimentos em infra-estrutura tradicional, e não naquela adequada ao objetivo de manter a floresta em pé, mostra que o governo ainda não tem a exata noção do perigo que ameaça a Amazônia. Nem apreendeu toda a potencialidade de um novo modelo de desenvolvimento para a Amazônia e para o país.

Não se trata de fazer programas figurativos. Trata-se de levar a sério os riscos e trabalhar em consenso para a implementação de atividades de bioeconomia que, mantendo a floresta em pé, são mais rentáveis e geram mais emprego e renda do que a exploração de madeira, o cultivo de soja e a pecuária extensiva. Uma bioeconomia que pode interagir positivamente para a transição em todo o país para uma economia de baixo carbono, antes da maioria dos países e, principalmente, dos países de grande porte como o Brasil. Ela pode gerar um PIB amazônico de centenas de bilhões de dólares. O Cerrado também tem extraordinário potencial para implantação de uma bioeconomia.

Alternativas há. O que está ficando mais escasso a cada ano perdido é o tempo para virarmos o jogo.

* Sérgio Abranches é sociólogo, cientista político e escritor. É autor de “Presidencialismo de coalizão”. 

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