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Meta-se ou não se meta

Há ruído demais e substância de menos a respeito da meta de inflação, autonomia do Banco Central e âncora fiscal. A questão é mais política do que técnica

Sérgio Abranches, para Headline Ideias
#ECONOMIA15 de fev. de 238 min de leitura
Fachada do edifício-sede do Banco Central, em Brasília. Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil
Sérgio Abranches, para Headline Ideias15 de fev. de 238 min de leitura

O presidente do Banco Central disse em entrevista ao programa Roda Viva que pode-se discutir a meta de inflação e por que os juros estão altos demais. Discutir, sim, mas prefere que se deixe tudo mais como está, até o novo marco fiscal. Deu para perceber que ele se preparou muito para a entrevista que não era sobre a economia. Era uma sessão de perguntas e respostas políticas. Falou-se do comportamento dos agentes políticos e do mercado sobre a inflação e os juros.

Campos Neto acenou com conversações de paz e melhor sintonia entre a política monetária e a política fiscal. Elogiou o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, várias vezes, e deixou claro que eles conversam com frequência. Avaliou positivamente as intenções fiscais de Haddad.

Fernando Haddad também está em missão de paz. Daí ter falado da importância de persuadir a autoridade monetária, com ações concretas, de que o caminho fiscal a trilhar pelo governo é correto. Como ainda não tem o novo marco fiscal para mostrar, usou palavras de conciliação e assegurou que a mudança nas metas não está na pauta do Conselho Monetário Nacional.

Campos Neto é um homem de direita. A circunstância que o levou ao Banco Central, portanto, não era boa. Como banqueiro central, seguiu suas convicções sobre como cumprir o mandato legal de perseguir as metas de inflação.

O governo que o nomeou não praticou a responsabilidade fiscal, nem seguiu os manuais da economia política liberal à qual Campos Neto se filia. Havia menos desconfiança em relação às decisões do então ministro da Fazenda, Paulo Guedes, por pura afinidade ideológica. Guedes prometeu uma política liberal austera e produziu miragens.

O Conselho Monetário Nacional presidido e conduzido por Paulo Guedes não era de bona fide e nunca foi realista. Sua visão do desempenho da economia foi fantasiosa o tempo todo. Era uma realidade paralela. Uma versão que os números não sustentavam e a massa de desempregados e famintos desmentia.

Campos Neto reconhece que os economistas que defendem a metodologia de metas de inflação estão divididos. Uma parte acha que a meta fixada é muito baixa e refletia uma realidade muito especifica e temporária. Não haveria problema se o Conselho Monetário Nacional fizesse uma calibragem mais realista, mas sempre técnica, no momento certo. Outra parte considera que mexer na meta teria resultados negativos, porque elevaria as expectativas de inflação. Ele se filia ao segundo grupo.

Entre a esquerda e a direita

Pode não haver uma distância intransponível entre as duas posições, introduzindo o tempo como uma variável de ajuste entre elas. Mexer na meta esta semana provavelmente teria resultados negativos. Mexer quando da apresentação do novo marco fiscal, tem chance de ser impacto neutro ou positivo. Eu estou entre os que considera a meta irrealista. Mas reconheço a alta probabilidade de efeitos colaterais adversos de uma mudança extemporânea.

Concordo com a tese de que a independência do Banco Central pode ser um fator de estabilidade. O lado amargo dela é que presidentes progressistas às vezes terão que conviver com um BC de direita e presidentes de direita terão que tolerar um BC mais heterodoxo. Lula não é o único.

A presidente do Banco Central do Chile foi nomeada pelo ex-presidente Piñera, em fevereiro de 2022, Boric convive com ela. O presidente Biden conviveu com Jerome Powell, nomeado por Trump para o FED. Biden o reconduziu pelo seu desempenho na pandemia. Política monetária não tem muito milagre. Há variações de postura. Todavia, um presidente do BC tolerante com a inflação fracassaria e não se sustentaria por muito tempo.

No fiscal, direita e esquerda divergem em todo o mundo. A direita adotou a austeridade a qualquer preço como dogma. A esquerda preferiu uma noção de responsabilidade fiscal e social. O PT até agora não definiu seu conceito de responsabilidade fiscal. Será a primeira vez. Não ter comprometimento social, num país desigual como o nosso, é pura alienação ideológica.

O marco fiscal é parte do imbróglio dos juros e das metas de inflação. Nos últimos anos tivemos a pior forma de âncora fiscal que se possa ter. Quem defende teto de gasto linear é absolutamente insensível às graves distorções distributivas que esse método simplista traz e que agravam as absurdas desigualdades brasileiras.

Inflação não é remédio

O Brasil não é um país no qual se possa tolerar "alguma" inflação. Há, ainda, muitos componentes da cultura inflacionária que nos levou ao colapso monetário e uma boa parte da economia segue indexada. O preço do descuido é este que a Argentina está pagando hoje.

Nosso vizinho está naufragando numa voragem inflacionária que elimina a confiança na moeda e provoca a fuga para o dólar. Começa a imprimir notas de maior valor. Os zeros vão se multiplicando e o valor real se dissipando. O ponto final é a hiperinflação.

Imaginar que inflação ajuda no crescimento é um velho erro. Ela quebra os assalariados e enrica os abastados. A economia precisa, sim, voltar a crescer, mas com inflação sob controle para que o crescimento leve a ganhos reais de renda para os assalariados. Ninguém quer a ilusão monetária de salários nominalmente maiores e deprimidos na real.

Neutro é neutro

Na política, Lula tem acertado. Na economia, elevou o tom, atirou na independência do BC, na taxa de juros e na meta de inflação e gerou muita turbulência. Mas, será que o presidente quer mesmo criar um enorme tumulto político-econômico, que pode ter resultados econômicos adversos, mesmo que ele logre desapear Roberto Campos Neto de seu mandato?

Não creio. Vejo que ele fez um forte bombardeio e recuou os canhões. Deixou outras figuras do governo, menos comprometidas com o processo decisório governamental, como a presidente do PT, Gleisi Hoffman, continuar a pressão. O recuo tem tanta informação política como o ataque. Campos Neto parece ter entendido.

A democracia, não me canso de repetir, requer certos formalismos e formalidades. O presidente do BC deve fazer todas as demonstrações de neutralidade. Sua própria visão da política monetária e fiscal valoriza ações neutras, que não excitem as expectativas e não mexam com as curvas de tendência mais longa. O mesmo vale para as expectativas da política.

Fernando Haddad busca contornar a turbulência inicial e preparar o terreno para mudanças de perspectiva na política econômica. Um dos componentes desse movimento será um modelo de marco fiscal responsável, tecnicamente fundamentado. Ele deve ser a base para formação de um consenso que harmonize as políticas monetária e fiscal. Mas, Haddad erra ao ser um ministro da Fazenda de resposta lacônicas. O silêncio não ajuda a consolidar a confiança. Declarações do ministro da Fazenda devem buscar administrar as expectativas.

Governo ruidoso

Há ruído desnecessário, também, no próprio governo. A forma pela qual se anunciou um painel sobre marco fiscal no seminário que o presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, está organizando encheu os corredores do poder e as redações de cochichos. Mercadante pretende interferir na missão de Haddad, sopram os corredores.

Fernando Haddad e Aloizio Mercadante chegam ao gabinete do governo de transição no Centro Cultural Banco do Brasil, em Brasília, em 28 de novembro de 2022. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Fernando Haddad e Aloizio Mercadante chegam ao gabinete do governo de transição no Centro Cultural Banco do Brasil, em Brasília, em 28 de novembro de 2022. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Um painel com grandes nomes da economia internacional e nacional, não representaria invasão da área de competência de Fernando Haddad. Mercadante e Haddad têm o costume de frequentar e participar de seminários. Sabem para o que servem. Pelo que entendi Mercadante quer fazer algo similar ao Fórum Nacional, organizado por João Paulo dos Reis Velloso, do qual o BNDES foi o anfitrião por décadas. Dele resultou uma coleção de dezenas de livros bem interessantes como retratos da época.

Mesas plurais, que iam da direita à esquerda, do governo à oposição, debatiam temas políticos, econômicos e sociais do momento. Participei de vários deles e compartilhei mesas com Mercadante acadêmico, deputado e ministro. O BNDES sempre foi, além de banco de desenvolvimento, um think tank. Tem condições de promover seminários proveitosos para uma discussão democrática e plural dos temas mais relevantes do momento.

Um painel sobre as melhores experiências de marco fiscal no mundo só ajudaria a formulação da qual Fernando Haddad está encarregado. Esses seminários não formulam políticas públicas. Podem apenas sugerir caminhos para sua formulação por aqueles responsáveis pelas áreas em questão.

Não tenho muita simpatia por formulações em gabinetes herméticos, que aparecem como surpresa e podem criar mais resistência do que apoio. Processos decisórios mais abertos, com consultas amplas e plurais, tendem a formar consensos mais sólidos e duráveis. Fernando Haddad conhece os modelos políticos e econômicos e sabe disso.

As urgências do Brasil

Tem coisa demais errada no Brasil. O legado de Bolsonaro é terrível e somou-se a erros de séculos. Ficar gastando energia sobre se mexe ou não mexe na meta fiscal este mês ou no mês que vem é perda de tempo e de capital político. Lula faria melhor concentrando todo o esforço nos macroproblemas que deixam o Brasil na retaguarda das tendências do século XXI.

Lula 3 é uma nova construção governamental. Como diz a ala majoritária do PT, democrática e amplíssima. Muitos dirigentes, intelectuais e militantes do PT terão que aprender a lidar com essa amplitude de opiniões e orientações ideológicas. O exercício de tolerância com a diversidade e a adversariedade de opiniões nunca foi o forte da maior parte deles. Nesse sentido, estão todos aprendendo esta nova arquitetura.

* Sérgio Abranches é sociólogo, cientista político e escritor. É autor de “Presidencialismo de coalizão”. 

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