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O marco temporal está prestes a ser declarado inconstitucional pelo STF. O direito tradicional líquido e certo dos indígenas a seu território será reconhecido pelo Estado não-indígena

Sérgio Abranches, para Headline Ideias
#POLÍTICA 12 de jun. de 238 min de leitura
Indígenas de varias etnias chegam na parte externa do Supremo Tribunal Federal (STF), para assistirem o julgamento do marco temporal de terras indígenas, em Brasília, em 7 de junho. Foto: Joédson Alves/Agência Brasil
Sérgio Abranches, para Headline Ideias12 de jun. de 238 min de leitura

O Supremo Tribunal Federal (STF) retomou a análise da constitucionalidade do marco temporal na demarcação das terras indígenas. O julgamento foi novamente interrompido pelo ministro terrivelmente evangélico, André Mendonça. Pediu vista do processo, não por questões de fé, mas para procrastinar. O processo está há tempo demais em vista para novo pedido ter sido mesmo necessário.

É preciso que aqueles que não conhecem os procedimentos do STF saibam que, quando um ministro pede vista do processo, não significa que este fique fora do alcance dos demais. Qualquer ministro poderia estudá-lo no tempo pedido por um de seus pares. Digamos que a razão do pedido de prazo seja para estudar os novos argumentos trazidos pelo voto do ministro Alexandre de Moraes que, como o relator, Edson Fachin, decidiu pela inconstitucionalidade do marco temporal.

Moraes adicionou teses novas, que transferem para o estado a responsabilidade por situações nas quais as terras tradicionalmente ocupadas por indígenas tenham sido entregues à propriedade de terceiros, por meio de ato juridicamente perfeito e realizado de boa fé. Neste caso, bastaria, digamos uma semana de estudo. Um jurista com formação necessária e suficiente para ser ministro da Suprema Corte, não precisa de mais tempo para tanto.

Felizmente, a ministra Rosa Weber, presidente do tribunal, que alcançará em breve a idade da aposentadoria compulsória, deixou claro que pretende ainda votar a matéria. Logo, o processo voltará à pauta em breve.

Maioria deve considerar o marco inconstitucional

Pelas reações de alguns ministros às teses de Alexandre de Moraes, tudo indica que o marco temporal será declarado inconstitucional por maioria de votos. Como o ministro deu um voto tecnicamente em divergência parcial com o relator, provavelmente haverá três grupos: o de ministros que acompanharão o voto original de Fachin, o de ministros que seguirão a parcial divergência de Moraes, e os que votarão, como Nunes Marques, pela constitucionalidade do marco temporal.

Os dois primeiros grupos, convergem ao considerar o marco inconstitucional, formando maioria. Ao final, pode haver uma conciliação em torno das teses adicionais aduzidas pelo ministro, em divergência parcial.

O importante é que ambos consideram o marco temporal inconstitucional e repõem, por maioria, o direito dos indígenas, respeitando a lógica. A noção do marco temporal não é jurídica, nem lógica, nem moral. É meramente ideológica. Procura travestir de legitimidade a cobiça da lavoura arcaica pelas terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas.

A falácia

É um absurdo lógico, histórico, antropológico e arqueológico pedir que os indígenas comprovem estar ocupando seu território tradicional ou em litígio em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Toda a terra pública e privada do Brasil foi tomada de seus ocupantes originais pelos colonizadores.

Quem os recebeu e os viu ocupar território seu, alguns presumindo a boa fé dos chegantes, outros desconfiados e hostis à presença invasora, foram os indígenas. Não por outra razão os chamamos de originários. Seus ancestrais já eram ocupantes de boa parte do território que se chamaria Brasil.

É evidente que se não estavam na sua terra em 1988 é porque foram impedidos de nelas estarem. A noção de marco temporal não sobrevive à leitura de uma apostila de história colonial para o segundo grau.

A referência ao litígio, tampouco faz sentido. Significa pedir aos indígenas que se comportem de acordo com os padrões culturais do colonizador. A ideia de justiça entre os indígenas segue curso diferente àquele do processo legal em nossos tribunais. É uma convenção não-indígena. Hoje, evidentemente, diante da brutalidade das invasões, grilagens, garimpagens, jagunçagens, treinaram alguns dos seus em universidades não-indígenas para poderem usar este caminho que, para eles, é postiço.

Os indígenas têm direito natural, tradicional, consuetudinário, a suas terras. Têm, também, direito moral a elas. Sua relação com a terra difere em muito da que é costumeira entre os não-indígenas. A relação dos indígenas com a terra é de continuidade. Ela é parte de suas vidas e suas vidas são parte delas. O relacionamento dos colonizadores é externo, de ocupação e exploração. Esta diferença, somada ao fato de que são os ocupantes originários do território, confere superioridade moral a seu direito à terra. O nexo tradicional, milenar entre os dois, lhes dá o direito moral da presença. A ocupação originária, o direito natural e o consuetudinário ao território.

Instituições acatadas

Apesar do direito natural, costumeiro e moral dos indígenas, foi preciso institucionalizá-lo na peça legal principal dos não-indígenas, a carta constitucional. Os indígenas acataram esta instituição não-indígena sobreposta a seu direito territorial e hoje lutam por ela. Acataram a instituição da demarcação, ou seja do refazimento de sua posse do território por procedimentos técnico-buocráticos e legais estranhos à sua cultura. E hoje lutam por sua aplicação. Aceitam que seu direito seja comprovado em laudo antropológico, portanto por um não-indígena especializado em cultura indígena e hoje lutam por ele.

Os que cobiçam as terras indígenas argumentam que o laudo antropológico é enviesado contra eles. Há formas desenvolvidas pela academia mundial para dirimir este tipo de dúvida e não é aquela imaginada pelos que querem lhes tomar a terra. Chama-se revisão pelos pares. O Brasil tem vários departamentos de excelência mundialmente reconhecida em universidades públicas. Se o laudo antropológico for posto em dúvida, basta referi-lo à análise de um comitê formado por professores sêniores desses departamentos. O STF deve considerar o laudo como o instrumento legítimo de comprovação para a demarcação

Raridade excepcional

Uma das teses apresentadas pelo ministro Alexandre de Moraes não reconhecida pelo relator, Edson Fachin, diz que no caso de ocupação de boa fé e por ato jurídico perfeito de terra tradicionalmente ocupada pelos indígenas cabe indenização plena. O exemplo dado pelo ministro é histórico, mais que secular. Uma dação de terras pelo imperador por recompensa aos voluntários que combateram ao lado da coroa. Seriam títulos de fé pública, que teriam passado do beneficiário original a seus herdeiros e aos herdeiros de seus herdeiros. Coisa raríssima. A esmagadora, se não totalidade, dos títulos de posse em terras públicas tradicionalmente ocupadas por indígenas a ser demarcada é fruto de grilagem e fraude cartorial.

Mas, admitamos que existam títulos recebidos em boa fé, mediante ato juridicamente perfeito. Neste caso, diz o ministro, a responsabilidade pela entrega ilegítima de território indígena a não-indígenas é do Estado e ele deve indenizar àqueles que serão desapropriados.

Vamos entender, esta terra não ficará com seus ocupantes titulados. Passará a ser terra indígena demarcada e seus ocupantes serão indenizados pelo valor da terra — que ocupam indevidamente ainda que por boa fé e ato juridicamente perfeito — e pelas benfeitorias que porventura nela fizeram.

Não discordo da tese. Duvido da ocorrência em volume relevante deste tipo de ocupação. Se houver e não for objeto de grilagem e fraude, é razoável a indenização completa em títulos da dívida agrária. O importante é que, de qualquer forma, se reconhece o direito constitucional dos indígenas à suas terras.

Direito constitucional que se terá que fazer respeitar

Infelizmente, no Brasil, de excessiva legislação e copiosa litigância nos tribunais, os direitos não são respeitados enquanto tal. Precisam ser reconhecidos em última instância e que o Estado os faça respeitar, se necessário com o uso da força legítima.

Não bastará, lamentavelmente, que o Supremo Tribunal Federal considere o marco temporal inconstitucional, que as terras indígenas sejam demarcadas seguindo o acórdão da decisão suprema, de repercussão geral. Por repercussão geral, entenda-se que deve ser seguida por todas as instâncias do judiciário e todas as repartições públicas. Será preciso fazer cumprir a demarcação por ações de vigilância estatal, comando e controle.

O caso põe em lados opostos ruralistas e povos originários, e está parado na Corte desde 2021.O tema tem relevância porque será com este processo que os ministros vão definir se a tese do marco temporal tem validade ou não. O que for decidido valerá para todos os casos de demarcação de terras indígenas que estejam sendo discutidos na Justiça. Foto: Joédson Alves/Agência Brasil
O caso põe em lados opostos ruralistas e povos originários, e está parado na Corte desde 2021.O tema tem relevância porque será com este processo que os ministros vão definir se a tese do marco temporal tem validade ou não. O que for decidido valerá para todos os casos de demarcação de terras indígenas que estejam sendo discutidos na Justiça. Foto: Joédson Alves/Agência Brasil

Faço um breve desvio do tema, para ilustrar o parágrafo acima. Recentemente, a imprensa divulgou que tribunais em diferentes estados brasileiros, decidiram que homens que cometeram comprovado feminícidio haviam sido isentados por legítima defesa da honra. Absurda convenção machista, patriarcal e imoral, que o Supremo Tribunal Federal invalidou em decisão unânime, de repercussão geral, e muito, mas muito, tardia, em março de 2021. A noção foi abandonada por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero.

Para valer, as decisões de juízes em desobediência à Suprema Corte terão que ser objeto de recurso a instâncias superiores. Espera-se que os magistrados que adotaram este conceito medieval sejam punidos por desobediência a decisão de corte superior.

Quando o STF considerar o marco temporal inconstitucional, não pacificará a questão, nem promoverá a paz pública e ela terá que ser objeto de ações estatais e judiciais posteriores. Todavia, será um avanço. Um bem-vindo reconhecimento de um direito natural, líquido e certo, dos indígenas brasileiros.

* Sérgio Abranches é sociólogo, cientista político e escritor. É autor de “Presidencialismo de coalizão”. 

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