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Lula e o eixo perdido da governabilidade

O presidencialismo de coalizão está desarrumado e, com a miniaturização das bancadas no Legislativo, formam-se coalizões dentro de coalizões, todas precárias. A governabilidade ficou mais penosa

Sérgio Abranches, para Headline Ideias
#POLÍTICA8 de fev. de 2311 min de leitura
Lula participa da cerimônia de posse de Aloizio Mercadante como presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Foto: Mauro Pimentel/AFP
Sérgio Abranches, para Headline Ideias8 de fev. de 2311 min de leitura

Lula vai governar com uma coalizão heterogênea e volátil. O líder do governo no Senado, o experiente senador Jacques Wagner, não encontra um tamanho fixo para governo e oposição no Senado. "Vai depender da matéria. A linha de raciocínio não é uniforme por partido", disse, em entrevista para a Folha. Já era assim antes, mas se agravou com o crescimento do centrão.

O presidencialismo de coalizão está desarrumado. O eixo bipartidário que disputava a presidência da República se rompeu em 2018. O PSDB se estilhaçou e hoje é um partido pequeno, de direita. Não está claro que partido o substituirá na disputa presidencial com o PT. Não será o PL, partido que tentou reeleger um governante incidental. No Congresso, a proibição de coligações proporcionais e a cláusula de barreira mais alta reduziram a fragmentação. Mas os partidos ainda são muitos e as bancadas medianas. A governabilidade ficou mais penosa e mais dependente do desempenho macroeconômico do governo.

A democracia brasileira precisa de novas lideranças

Neste primeiro mês de governo, Lula acertou muito mais do que errou na política. O principal tropeço foi desmentir sua promessas de ser "governo de um mandato só" e já falar que pode disputar a reeleição. Não deveria. A fila tem que andar. A democracia brasileira precisa de novas lideranças. Elas não crescem na sombra espessa dos longevos. É preciso dar a elas as condições de amadurecerem. Lula pode ser o emulador dessa mudança geracional na política, o fazedor de líderes e não só no PT, mas em toda a frente democrática que o elegeu.

Lula acerta na saúde ao apoiar politicamente a estratégia da ministra Nísia Trindade de dar prioridade à vacinação e à recuperação do SUS. Também acerta muito ao chamar à responsabilidade pais que não vacinam suas crianças. Está certo ao tornar obrigatória a vacinação das crianças do Bolsa Família. Protege os filhos dos mais pobres. A noção de liberdade da ultradireita de pais se recusarem a vacinar seus filhos é moralmente injustificável. Ela se anula diante do direito maior das crianças à saúde, ao bem-estar, à educação e a uma vida plena.

Lula age corretamente ao proibir garimpos em terras indígenas e unidades de conservação. Os garimpos, além de ilegais, só destróem, espalham doenças, poluição e violência. Por onde passam deixam um rastro de mortes, doenças e sérios problemas sociais. Acertará ainda mais, se aprovar a destinação do que resta de terras públicas não destinadas. A terra pública não destinada, aquela que não foi definida como terra indígena, unidade de conservação ou área de exploração econômica, é o alvo preferencial de grileiros e da ocupação ilegal. Seria um passo muito importante no caminho da regularização fundiária da região.

Onde Lula erra mais é ao confundir o ocupante da presidência do Banco Central com a própria instituição. Ao insistir no ataque repetido ao banco central independente e à política de controle da inflação cria ruído e nenhuma boa solução. Banco central independente e controle da inflação não são pautas neoliberais. O banco central independente é hoje padrão nas nações resolvidas. Há políticas neoliberais de estabilização, mas a metodologia de metas de inflação não é uma delas. É utilizada inclusive por governos progressistas. A tolerância com a inflação concentra renda, atinge principalmente os mais pobres. Lula sabe disso. O Brasil ainda é muito indexado. Quem vive de rendas e de ganhos de capital tem como se proteger da inflação. Os assalariados é que não têm. Em uma conjuntura de alto desemprego, os trabalhadores têm ainda menos margem de defesa da inflação. Capitalistas podem ganhar com juros e inflação altos. Trabalhadores perdem.

Os juros estão, sim, altos demais. Lula tem razão para reclamar. Precisa, todavia, considerar que a inflação ainda está muito acima da meta de 3,25%. Os juros reduzem o investimento e prejudicam o crescimento, mas a inflação devora o salário dos trabalhadores, deixando os orçamentos familiares empobrecidos. A queda da renda real, além de reduzir a aprovação do desempenho presidencial pela sociedade, deprime a demanda e afeta negativamente a economia. A inflação é fonte de preocupação e desconforto em muitos países do mundo hoje. Há causas externas que se associam às causas internas. É preciso mesmo enfrentar a anomalia da economia brasileira que reage muito pouco à taxa de juros. Pode ter um componente ideológico. Mas o mais importante está na estrutura do sistema financeiro nacional. Esta é mesmo uma discussão que precisa ser feita. Não é uma questão exclusivamente monetária. É de economia política. Não é porém uma prioridade de começo de governo. Atacar o banco central independente e as metas de inflação, por causa dessa rigidez dos juros, é contraproducente e desvia a atenção dos problemas reais.

Lula faz com o BC confusão que não faz com outras agências de estado. Ao se tornar independente, o Banco Central passou a ser uma agência de estado. A descoincidência de mandato tem o objetivo de reforçar o descolamento entre a política monetária e a política do governo. O presidente dos EUA, Joe Biden, conviveu com o presidente do FED, Jerome Powell, nomeado por Trump em 2018. Mais, ainda, Biden manteve Powell no cargo, após o término de seu mandato de quatro anos, por seu desempenho na crise da pandemia de Covid.

Politicamente, Lula tem toda razão de criticar o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. Ele não teve comportamento condizente com o de presidente de um banco central independente. Atuou politicamente e sua atuação desrespeitou a independência do BC. Roberto Campos Neto frequentava as reuniões ministeriais de Bolsonaro, depois que a lei que tornou o banco central independente entrou em vigor. Frequentou jantares político-partidários. Fazia parte de um grupo de WhatsApp composto por ministros ultraidentificados politicamente com Bolsonaro. Presidente do Banco Central tem status equivalente ao de ministro, mas ministro não é, nem pode agir como um. Campos Neto contribuiu para manter difusa a fronteira BC/governo, que deveria ser muito bem demarcada.

Ao fazer esses discursos Lula prejudica o desempenho do ministro da Fazenda, afasta-se da pauta da democracia que justificou a frente que o elegeu. Ele precisa de bom desempenho econômico e da frente democrática para gerenciar uma coalizão líquida. Assumindo uma posição mais à esquerda, Lula se afasta do centro da coalizão e fica mais distante da frente democrática que o elegeu. E ele vai precisar dela para superar as dificuldades que terá com a coalizão parlamentar de sustentação do governo.

Governabilidade mais difícil

O governo Lula 3 assume uma estrutura administrativa destrambelhada e terá mais dificuldades na gestão de sua coalizão. O arranjo que assegura a governabilidade brasileira está desalinhado. O sistema partidário ficou menos fragmentado. Mas os partidos ficaram com bancadas médias. Eles se unem em blocos para aumentar o número de deputados e melhorar sua participação em comissões e outras posições definidas com base na proporcionalidade. Os blocos e federações são, tecnicamente, coalizões. No caso, formadas para superar as restrições da cláusula de barreira e melhorar sua posição na escala de proporcionalidade. Os pontos de veto aumentaram e as âncoras partidárias ficaram menos eficazes. As lideranças no Congresso dizem ao presidente que ele precisa ter uma base mais sólida. Não é tarefa fácil e pode nem ser factível.

As maiorias no interior dos blocos e federações são mutáveis, dependendo do momento e do tópico. Os partidos também se dividem em facções e não têm coesão ao votar. A coalizão de governo tende a ter muita volatilidade. Parte vem das coalizões dentro da coalizão, parte das divisões internas dos partidos. As maiorias na coalizão de governo serão instáveis, variando de tamanho a depender do tema. Cada votação envolverá uma negociação que consumirá tempo e recursos. A governabilidade ficou mais penosa.

Até a oposição agora é volátil. A maior parte dela é de partidos e políticos do centrão que estiveram na coalizão de Bolsonaro. O centrão tem o governismo no seu DNA. É a sua ideologia. Bancadas do centrão, como a evangélica ou a ruralista são conservadoras. Mas entre o conservadorismo e o governismo, muito parlamentares tendem para este último. Parte considerável do que seria oposição está disposta a aderir ao governo e espera ser incluída na divisão de cargos e verbas.

Lula enfrenta outro problema decorrente do desgoverno de Bolsonaro e da destrutividade da má gestão. A missão de Bolsonaro e seus ministros era de demolição e não de formulação de políticas públicas. Ministérios novos, ou que antes eram secretarias ligadas à presidência, ainda estão praticamente como escaninhos vazios. Só têm as funções e parte da cúpula, sofrendo escassez de pessoal para funcionarem. Agências como o Ibama, o ICMBio e a Funai, precisam ser reconstruídas. Muita gente saiu durante a demolição. No caso do Ibama e do ICMBio os quadros são antigos, muitos funcionários de campo, essenciais neste momento de urgências ambientais e humanitárias, estão em idade de aposentar. A Funai tem o mesmo problema, além de vários especialistas de primeira qualidade que deixaram o órgão diante do bombardeio de Bolsonaro. O SUS está subfinanciado e meio desmantelado, sobretudo na coordenação federal. O governo assumiu com informação zero. A transição foi um exercício de sabotagem antidemocrática.

É mais uma razão para o presidente Lula ser mais cauteloso, porque precisará de muito apoio para pôr a casa em ordem. Vai precisar de interlocutores em áreas que lhe foram e continuam a lhe ser hostis. Um governo puro de esquerda tem pouca chance de superar esses obstáculos. Precisará de fortes alianças ao centro. O deslocamento de Lula para a esquerda gera reações defensivas e afastamento de lideranças de centro e centro-direita mais sensíveis.

Perde-perde ou ganha-ganha, qual a estratégia?

O ministro da Fazenda do Brasil, Fernando Haddad, fala durante coletiva de imprensa conjunta com o ministro da Economia da Argentina, Sergio Massa, na casa presidencial Casa Rosada, em Buenos Aires, em 23 de janeiro. Foto: Luis Robayo/AFP
O ministro da Fazenda do Brasil, Fernando Haddad, fala durante coletiva de imprensa conjunta com o ministro da Economia da Argentina, Sergio Massa, na casa presidencial Casa Rosada, em Buenos Aires, em 23 de janeiro. Foto: Luis Robayo/AFP

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad está no caminho correto de promover a sintonia entre a política fiscal e a monetária. É a melhor forma de buscar a combinação possível em cada conjuntura que permita o crescimento e a geração de emprego mantendo a inflação nos limites da meta. Sua melhor contribuição para distensionar esse quadro seria acelerar a entrega do novo marco fiscal ao Congresso. A coalizão do governo deveria se empenhar em aprovar o marco fiscal com rapidez e ouvindo as melhores opiniões independentes ter um marco fiscal o mais durável possível. A apresentação do marco fiscal eliminaria uma fonte de incerteza e daria horizonte para a dívida pública. Este seria um movimento em que todos ganham, o governo e a sociedade. Para se tornar independente do mercado, o governo precisa encontrar um caminho que combine a prioridade social com a responsabilidade fiscal. Como diz Lula: responsabilidade social e fiscal. O novo marco servirá para isto. O orçamento de 2024, a cargo da ministra Simone Tebet, provavelmente apontará para eliminar subsídios aos ricos para aumentar o investimento no social.

A estratégia perde-perde é atacar alvos secundários, como o BC e os juros, que podem ser resolvidos pela ação do ministério da Fazenda. Os golpistas são o inimigo principal e deles o ministro Flávio Dino está cuidando bem. Dispersar as energias atirando em alvos laterais, além de não gerar benefícios reais ao governo, piora o desempenho da economia, com as reações adversas do mercado e outros agentes econômicos. Atrasa a safra de bons resultados econômicos dos quais Lula precisa para consolidar a governabilidade.

Depois da repercussão negativa de seu discurso na posse de Aloizio Mercadante como presidente do BNDES, Lula amenizou um pouco seus ataques ao Banco Central. Foi aconselhado pelas lideranças partidárias a terceirizar essas críticas. Lula diz agora que não quer confusão. Está certo, o tumulto e a piora de expectativas não ajuda sua governabilidade nesses primeiros meses de governo. O Banco Central é questão do Senado, como disse, e os juros um problema do presidente do BC e não dele. Que reclamem no BC. O Senado deve mesmo fiscalizar o Banco Central e há parâmetros para essa vigilância. A taxa de juros é problema do Copom, o comitê do BC que cuida da política monetária. O presidente do Banco Central deve prestar contas de seu desempenho e da instituição que dirige. Lula ganhará mais se dedicando às prioridades desse início tão atípico de governo. Há emergências e carências herdadas do desmazelo bolsonarista a atender. O BC não é uma delas.

No balanço do primeiro mês, Lula acertou muito mais do que errou. É um começo difícil e, para quem já governou o país por oito anos em condições muito mais favoráveis, é razoável a irritação presidencial. Não é agradável perder tanto tempo só para fazer a máquina pública desestruturada voltar a andar. O golpe mais bem sucedido de Bolsonaro não foi na democracia, que resistiu a ele. Foi na administração pública, por ele demolida. Mas Lula tem uma tarefa nobre. Revigorar a democracia, reconstruir a administração, aproveitar a frente democrática que o elegeu para estimular a maturação de novas lideranças, mais jovens, que possam conduzir o Brasil por um caminho mais promissor no restante do século XXI.

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