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Análise – Lula e a governabilidade incômoda

A governança do presidencialismo de coalizão é disfuncional. O presidente tem que compartilhar o poder com o Legislativo e não é por causa das emendas que aumentam aceleradamente. Elas são resultado, e não causa do novo padrão de governança

Sérgio Abranches, para Headline Ideias
#POLÍTICA18 de dez. de 236 min de leitura
O oresidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, participa da solenidade de posse de Paulo Gonet no cargo de Procurador-Geral da República, no auditório Juscelino Kubitschek, sede da Procuradoria-Geral da República (PGR), em Brasília. Foto: Ricardo Stuckert/PR
Sérgio Abranches, para Headline Ideias18 de dez. de 236 min de leitura

O presidente Lula deve estar estranhando o modo de governar deste terceiro mandato. É muito minoritário no Congresso. No Senado, a situação do governo não é melhor, embora seja um pouco mais confortável. Não bastasse ser minoritário no Legislativo, o PT está mais dividido e suas divisões são mais vocais do que nunca. A presidente do partido, deputada Gleisi Hoffmann, se opõe ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, o único que coleciona vitória expressivas no Congresso. Aprovou o marco fiscal, a reforma tributária e a taxação de empresas incentivadas no âmbito estadual. Nos outros campos, o governo tem colecionado derrotas.

Ao final da sessão histórica que aprovou finalmente a reforma tributária, o presidente da Câmara, Arthur Lira, agradeceu ao empenho do ministro, embora atribua o projeto ao Legislativo. Na verdade, foi obra compartilhada, que conseguiu romper uma barreira de desentendimentos entre Câmara e Senado, entre os interesses econômicos, inclusive estatais, nacionalmente expressos numa, e os interesses federativos, inclusive privados, representados pela outra.

O fato é que a agenda de Haddad tem uma visão contemporânea da nova esquerda, ou nova social democracia, pós-globalização e pós-austeridade fiscal. Sabe que ou as forças progressistas desenham sua própria metodologia de responsabilidade fiscal, harmonizada com sua prioridade social, como fez a engenhoca em Portugal, ou perde espaço para a direita e a extrema-direita, por fracassar na política econômica. A maioria do PT tem visão retrógrada, pré-tudo isso e seu corporativismo distorce sua política social. Mesmo Lula não absorveu todas as mudanças ocorridas no plano global que envelheceram a esquerda e catapultaram a extrema-direita.

O retrato da minoria

O PT e partidos aliados da esquerda não chegam a 15% das cadeiras da Câmara. O MDB, tradicional pivô pelo centro de seus governos anteriores, não chega a 10%. Juntos, somam apenas 95 deputados, 18% do total. O PL, oposição, conta com 96 cadeiras. A maioria está no Centrão, um conglomerado amorfo de partidos que sobrevivem nas franjas do Estado. O resultado é que o presidente tem que compartilhar o poder com o presidente da Câmara, que na campanha de 2022 estava no palanque adversário, vestindo a camiseta de Bolsonaro. Arthur Lira, diante da derrota de seu candidato, que julgava imbatível, também a contragosto, abriu-se à cooperação com Lula.

No Senado, o maior partido é o PSD, com 15 senadores e a presidência da Casa, nas mãos de Rodrigo Pacheco. O PL, oposição, é a segunda força, com 12 cadeiras. O MDB, aliado tradicional, tem a terceira bancada, com 11 senadores. O PT, é apenas a quarta bancada, com 8 cadeiras. A esquerda, muito dividida no Senado, soma 16 senadores, chega perto de 20%, com o MDB, a coalizão costumeira de Lula chega a um terço dos votos. O universo partidário é muito mais desunido do que no passado e com bancadas menores na média, o que dificulta ainda mais a formação de coalizões funcionais. O Centrão é majoritário no Senado, se o PSD for incluído nele, o que me parece discutível. O que é indiscutível é que o PSD é o pivô de qualquer maioria na Casa da federação.

Poder compartilhado

Lula só pode formar uma coalizão disforme e disfuncional, e dependerá de bons articuladores, como Haddad, com boas relações com os presidentes do Legislativo, para aprovar medidas importantes. Mesmo sendo o mais jeitoso, Haddad não conseguiu impedir a prorrogação da desoneração da folha, nem manter o veto de Lula. Perdeu na Câmara e no Senado. Por duas razões principais. A primeira, porque foi uma medida extemporânea. Teria sido melhor promover a desoneração no corpo da segunda etapa da reforma tributária, dos impostos e contribuições sobre os rendimentos. A segunda, porque não teve o apoio nem do presidente da Câmara, nem do presidente do Senado.

O presidente da República tem que compartilhar o poder com o Legislativo e não é por causa das emendas que aumentam aceleradamente. Elas são resultado e não causa do novo padrão de governança. A causa é um presidente em minoria nas duas Casas, cujos presidentes controlam a maioria de modo distinto. Com os plenários divididos entre partidos de tamanho parecido e diversos, uma coalizão coerente e funcional se torna impossível. Lula não tem uma coalizão. Tem um ajuntamento, no qual a sua verdadeira coalizão é minoritária.

Na Câmara, Arthur Lira lidera a maioria, que tem o centrão como núcleo mais poderoso. No Senado, Rodrigo Pacheco representa o partido-pivô das maiorias, mas não tem o mesmo poder que Lira. Para se eleger, precisou do apoio do senador Davi Alcolumbre (União), líder do Centrão. Não por acaso seu candidato à sua sucessão, apesar de seu ter a 5a bancada, com sete senadores, mesmo número que o Podemos.

Lula é observado pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, na sede da PGR, em Brasília. Foto: Ricardo Stuckert/PR

O presidencialismo de coalizão está desarrumado

O poder compartilhado entre o presidente da República e os presidentes das duas Casas legislativas desarruma politicamente o presidencialismo de coalizão. O modelo político brasileiro já havia sofrido uma ruptura no plano eleitoral com o colapso do PSDB e a vitória de Bolsonaro. O eixo da disputa bipartidária pela presidência se desfez e o padrão de formação de governo e oposição sob liderança presidencial ficou capenga. O governo Bolsonaro só piorou este quadro, hiperminoritário e oriundo do centrão. Se não aparecer um candidato ao lugar antes ocupado pelo PSDB, e certamente este não é o PL, teremos eleições entre o PT, do lado esquerdo, e volatilidade de partidos no lado da direita.

O destino da extrema-direita é ser minoria ou retornar ao Centrão.

"A tendência brasileira à carnavalização permite o enredo em que a nossa extrema-direita não passa de um Centrão oportunista e parasitário com linguagem e atitudes radicalizadas."

O conservadorismo aparece na pauta dos costumes e comportamentos civis por causa do peso dos evangélicos. Estes são outra parte do enredo, longe dos valores da Reforma protestante, com uma leitura de escopo talmúdico da Bíblia e confusão entre os papéis de líderes de igrejas e líderes políticos.

O presidencialismo de coalizão se tornou muito mais dificultoso. A governança é disfuncional. Lula não ajuda, porque tem o hábito de manter grupos adversários próximos a si para contrabalançar as posições, evitando ir muito para a esquerda ou para a direita. Mas neste novo ecossistema fracionado e dominado por entidades amorfas, mais divisão apenas enfraquece a presidência e o governo. A incoerência e a inconsistência de posições criam o ambiente perfeito para a paralisia decisória ou para a transferência de mais poder orçamentário do Executivo para o Legislativo. No presidencialismo, o Legislativo não executa política públicas. Se passa a executar parte do expressivo orçamento, o faz em detrimento das políticas públicas e aumentando a desigualdade intermunicipal e intersetorial.

A síntese é inevitável. O Brasil está em crise política continuada desde 2015-2016, tanto no eixo eleitoral do presidencialismo de coalizão, quanto no seu eixo político. A única forma de manter a governabilidade, nesse ecossistema político-eleitoral em crise, é compartilhando poder e aceitando limites mais estreitos para a amplitude e profundidade das políticas públicas.

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