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Governo minoritário aprova regime fiscal com ampla maioria

A coalizão do governo é minoritária e anda descontente com sua articulação, leia-se acordos não cumpridos. A maioria que aprovou o novo regime fiscal não é do governo é "da Casa"

Sérgio Abranches, para Headline Ideias
#POLÍTICA24 de mai. de 238 min de leitura
Os partidos do presidente da Câmara, Arthur Lira, o PP, e Rodrigo Pacheco, o PSD, deram a mesma maioria ao projeto do arcabouço fiscal, de 79% das respectivas bancadas. Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados
Sérgio Abranches, para Headline Ideias24 de mai. de 238 min de leitura

Na terça-feira à noite, 23, após a votação que aprovou o novo regime fiscal, o que mais se ouvia de deputados, governistas e oposicionistas, é que a aprovação se deu, "apesar da articulação do governo". A margem extensa da vitória do projeto de lei complementar que substitui o teto de gasto por uma regra fiscal mais inteligente se deve à liderança do presidente da Câmara, Arthur Lira, e à paciente negociação do ministro da Fazenda, Fernando Haddad.

A votação foi precedida por reuniões de alinhamento que levaram a algumas mudanças finais. Uma delas, na casa do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, teve dois destaques. O primeiro, a presença do presidente da Câmara, Arthur Lira. Ele e Pacheco andaram afastados por divergências que têm a ver com disputas de poder entre as duas Casas do Legislativo.

Na reunião, os dois pareciam ter se reconciliado, com direito a troca de elogios, que na linguagem política significa a tentativa de mostrar bom relacionamento. A segunda, a presença de empresários e banqueiros, vários apoiados e financiadores de Jair Bolsonaro e do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. Abriu-se, com o almoço, um canal para pressões por maior aperto no regime fiscal e pela redução dos juros. A demanda por redução da taxa de juros, que está muito acima do justificável pela situação da economia e trajetória da inflação, foi parte central do cardápio do almoço.

Na votação, deve-se notar que, entre os partidos de esquerda, houve 26 votos contrários ao PLC do regime fiscal e, entre os oposicionistas, 115 votos favoráveis. No partido de Valdemar da Costa Neto e Bolsonaro, 30% votaram a favor. Os partidos do presidente da Câmara, Arthur Lira, o PP, e Rodrigo Pacheco, o PSD, deram a mesma maioria ao projeto, de 79% das respectivas bancadas.

Estes números são suficientes para demonstrar que não foi um voto conduzido pela coalizão governista. A maioria pertence à coalizão alternativa, que se pode dizer que é da Casa, do próprio Legislativo, articulada por seu presidente, Arhur Lira.

Do governo, de fato, a grande contribuição foi do ministro da Fazenda, Fernando Haddad que negociou o projeto com habilidade e mereceu o elogio de todos que estiveram nas conversas com ele. A sensação generalizada entre deputados é que o governo — leia-se Lula e a Casa Civil — não se empenhou na articulação para aprovar o regime fiscal, deixando esse esforço inteiramente com Haddad. Ficaram destaques de emendas para serem examinados hoje, mas eles não devem passar. O projeto seguirá para o Senado, onde provavelmente será aprovado com o teor que lhe foi dado pela Câmara.

Governo de minoria

É uma situação nova. Diferente do que ocorria no governo Bolsonaro e também da dinâmica política anterior à ruptura de 2016, com o impeachment da presidente Dilma Roussef. Um presidente popular, embora com popularidade inferior à que obtinha em seus dois mandatos anteriores, com um partido forte e ativo, porém minoritário no Congresso, especialmente na Câmara dos Deputados.

O presidente da Câmara, Arthur Lira, tem dito publicamente que a composição da Câmara não corresponde à correlação de forças que saiu das urnas no segundo turno de 2022 e que o protagonismo do Legislativo aumentou e deve ser considerado. A composição do Legislativo tem se mostrado mesmo adversa ao governo.

O protagonismo do Legislativo está diretamente associado à fragilidade da coalizão governista. Esta, é numérica e decorrente de erros de análise do quadro político e de articulação no Legislativo. As reclamações sobre acordos não cumpridos, por exemplo, são generalizadas.

O resultado é que os projetos de interesse do governo que não têm o apoio dos presidentes das duas Casas não passam. Há, entre eles, alguns que são cruciais para o presidente Lula e outros que refletem o viés favorável a pautas do PT, como a revisão da privatização da Eletrobrás e do marco legal do saneamento. Estes últimos não têm qualquer viabilidade no Legislativo, simplesmente, não passarão.

Outros projetos sofrerão mudanças que prejudicam seriamente alguns objetivos do governo que contrariam interesses de lobbies poderosos no Congresso. Principalmente do agro, dominado por apoiadores de Bolsonaro e hostis às políticas do Meio Ambiente, de proteção e demarcação de Terras Indígenas. Nascem desta contrariedade as mudanças introduzidas pelo relator Isnaldo Bulhões (MDB-AL) na medida provisória que reorganiza o governo e cria vários ministérios. As mudanças reduzem, principalmente, as competências dos ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas.

O assédio da Petrobras

Além da fragilidade do apoio ao governo no Congresso, há contradições internas que o debilitam ainda mais. Quando a Petrobras insiste em um projeto de exploração de petróleo já condenado anteriormente pelo Ibama, no governo Temer, o presidente da empresa e o ministro das Minas e Energia contrariam a prioridade de Lula para a política de contenção da mudança climática. O presidente tem afirmado esta prioridade em todos os seus encontros internacionais. É uma contradição significativa.

Ao confrontar o ministério do Meio Ambiente, a Petrobras debilita o governo politicamente e, em particular, a ministra Marina Silva. A insistência em um projeto fóssil repercute no Congresso, fortalecendo a oposição a toda e qualquer medida na área ambiental.

Há um claro fechamento de posição das bancadas dos estados do Norte contra a posição do Ibama. Se o presidente da Petrobras, que é do PT, conseguir atropelar a posição técnica do Ibama, ele contribuirá significativamente para fortalecer a oposição a todas as políticas ambientais e de proteção das terras indígenas. Governo em minoria e dividido internamente em torno de uma política prioritária do presidente, arrisca-se a ser um colecionador de derrotas.

Não é uma questão trivial. É fundamental. A Petrobras, para ser coerente com a posição internacional de Lula, deveria estar dando preferência a investimentos em energias renováveis, eólica, solar, biocombustíveis e a liderar o projeto de inovações que levem ao hidrogênio verde, o melhor candidato a substituir o petróleo no campo energético.

A insistência da Petrobras em sua ultrapassada vocação fóssil fortalece os interesses retrógrados dos que se opõem às políticas ambientais. Particularmente na Amazônia, o hotspot do conflito ambiental e climático. Alia-se, concretamente, aos interesses que se opõem ao combate ao desmatamento e ao garimpo, à demarcação de terras indígenas. Age, também, contra aqueles que trabalham pela transição energética, defendida por Lula.

Teste ácido

A votação do regime fiscal não tem sido um teste da força do governo no Congresso. O primeiro teste real será a decisão sobre a medida provisória que reorganiza o governo, relatada pelo deputado Isnaldo Bulhões (MDB-AL). As principais mudanças são eloquentes. Retiram do ministério do Meio Ambiente a Agência Nacional de Águas (ANA) e a gestão da política de saneamento, a gestão da política de resíduos sólidos e o Cadastro Ambiental Rural. Transfere a demarcação de terras indígenas do ministério do Povos Indígenas pra a Justiça. Faz alterações no desenho das competências do ministério do desenvolvimento agrário. Pelo que dizem o presidente da Câmara, o relator, que é líder do MDB, e outras lideranças partidárias, o governo dificilmente conseguirá evitar essas mudanças.

O presidente da Câmara, Arthur Lira, interpreta essas mudanças como correção do "esvaziamento do poder do ministério da Agricultura". Além disso, afirma que o ministério do Meio Ambiente não tem apoio político no Congresso.

No Meio Ambiente, a mudança mais lesiva é a transferência da competência pelo Cadastro Ambiental Rural (CAR) para o recém-criado ministério da Gestão e Inovação dos Serviços Públicos. O relator diz que é uma solução de compromisso, entre deixar o CAR no ministério do Meio Ambiente ou transferi-lo para o ministério da Agricultura. O CAR é um instrumento da política de regularização fundiária e proteção ambiental, portanto estranho à competência do ministério da Agricultura e estranhíssimo à competência do ministério da Gestão e Inovação.

O ministério dos Povos Indígenas fica muito prejudicado ao perder a capacidade de comandar a demarcação das terras. Ao retornar esta competência para o ministério da Justiça, a mudança esvazia o novo ministério. É uma indicação de que o governo terá muita dificuldade neste tema no Congresso.

Um outro fator que dificulta a reversão de mudanças contidas no substitutivo do relator Isnaldo Bulhões é que as medidas provisórias caducam no final deste mês. O governo terá pouco tempo para negociar e tentar evitar algumas dessas mudanças. Mas não contará com o apoio de Arthur Lira e terá que enfrentar a má vontade da bancada do agro e a barreira da oposição.

Dependendo da reação do governo neste teste ácido, sua situação no Congresso pode piorar. Se o governo conseguir entender melhor o novo contexto político em que assumiu e recalibrar sua articulação no Legislativo, pode mudar o clima e evitar algumas derrotas importantes. Mas, é difícil que o governo Lula venha a ter uma coalizão majoritária que lhe dê maior conforto político no Congresso.

* Sérgio Abranches é sociólogo, cientista político e escritor. É autor de “Presidencialismo de coalizão”. 

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