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Governo dividido perde

O mundo e o Brasil de hoje são muito diferentes daqueles em que Lula foi presidente antes. Ambivalências e omissões de Lula esvaziam seu poder de agenda no Congresso

Sérgio Abranches, para Headline Ideias
#POLÍTICA1 de jun. de 2310 min de leitura
O presidente da Câmara, Deputado Arthur Lira durante a aprovação do projeto de lei de conversão (PLV) 12/2023, derivado da Medida Provisória 1.154/2023, que estabelece a nova estrutura administrativa da Esplanada dos Ministérios. Foto: Lula Marques/Agência Brasil.
Sérgio Abranches, para Headline Ideias1 de jun. de 2310 min de leitura

A Câmara aprovou o substitutivo à Medida Provisória 1.154/23, que reorganizava os ministérios do governo na madrugada em que ela perdia validade por decurso de prazo. Aprovou para a MP não caducar. A sessão da Câmara terminou com um gosto amargo para todos os envolvidos. O placar de 337 votos a favor e 125 contra é uma miragem. Mais de 200 votos para aprovar o substitutivo do relator foram dados a contragosto.

O governo não tem o que celebrar, era aceitar o esvaziamento dos ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas, ou ver a MP caducar e ter que passar um ano com o desenho ministerial de Bolsonaro. Lula ficaria sem ministérios em setores nos quais se apoia para retomar a credibilidade internacional, como Povos Indígenas, Direitos Humanos e Igualdade Racial.

Terminada a votação, um Arthur Lira exausto disse que não se comemorava o resultado. Foi dado com sacrifício, segundo ele. E alertou, "daqui para a frente o governo vai ter que andar por suas próprias pernas. Não haverá mais nenhum tipo de sacrifício". Os votos que aprovaram a MP, Lira completou, foram dados exclusivamente a pedido dos líderes. Leia-se não por lealdade a Lula.

O dia do vire-se

Uma longa e exaustiva reunião de Lira com os líderes dos partidos da coalizão e independentes, após um telefonema de Lula para ele, terminou em um acordo tipo último do resto da vida deste governo. Daí em diante, ou o governo muda a forma pela qual se relaciona com a Câmara, ou não terá mais a boa vontade dos líderes.

O líder do governo, deputado José Guimarães, ainda mais exausto do que Lira, agradeceu ao presidente da Câmara e aos líderes e reconheceu acordos não cumpridos, descortesias do governo com os deputados, bloqueio de emendas e nomeações.

O Senado esperou o resultado para aprovar em toque de caixa o que receberia da Câmara. Foi um voto mais amistoso ao governo, mas incomodado com o fato de terem que correr, sem poder discutir adequadamente a medida provisória e o seu substitutivo. Sem poder introduzir qualquer modificação porque a medida caducaria.

Governo contra governo

Nada explica que o governo tenha deixado as negociações para a véspera do dia em que a MP 1.154/23 perderia a validade por decurso de prazo. O substitutivo do relator da MP que desfigurou os ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas não foi surpresa para o governo.

O ministro da Articulação Institucional Alexandre Padilha, disse que o projeto não foi o ideal, mas foi uma "construção" com o Congresso. Houve ministros que, consultados, aprovaram as mudanças. O relator e vários líderes disseram que o substitutivo foi negociado com o governo. Ou seja, há um pedaço do governo que aprova decisões antagônicas a outro pedaço. Tudo indica que faltou uma diretriz comum do presidente Lula sobre projetos de interesse do governo.

O que se ouve é que vários ministros de Lula foram consultados e aprovaram as mudanças. O relatório contou com votos a favor do PT na comissão mista, composta por deputados e senadores. São mudanças graves, que enfraquecem a política ambiental e retiram atribuições centrais do ministério dos Povos Indígenas, entre outras alterações.

Poder da lavoura arcaica

Não se pode dizer que foram decisões menores. Retirar o CAR, Cadastro Ambiental Rural, do ministério do Meio Ambiente, destitui a política contra o desmatamento de instrumento crucial. Retirar a demarcação de terras indígenas do ministério dos Povos Indígenas é esvaziar parte de seu propósito. Esta era a atribuição da Funai e só era competência do ministério da Justiça porque ele abrigava a Funai. O relatório deixa a Funai na pasta dos Povos Indígenas, mas transfere a demarcação para o ministério da Justiça. É um golpe contra os povos indígenas, exatamente quando eles têm pela primeira vez representação e voz no governo.

A pressão no Legislativo contra a política de meio ambiente e a demarcação de terras indígenas envolve o interesse nas terras da Amazônia e de outros biomas. O próprio presidente da Câmara, Arthur Lira, disse em entrevista à Globo News que a questão agrária, leia-se fundiária, é complicada no Congresso. A derrota do governo é reflexo do poder do agro, politicamente liderado pela lavoura arcaica. Na discussão no Senado ficou claro que o grande vitorioso foi o agronegócio com a participação ativa da frente ruralista.

Forma, sabor e consistência de derrota

Falando claramente, foi uma derrota mitigada pela aprovação da MP, em lugar de retirá-la de pauta para que caducasse, como queria a maioria dos aliados, independentes e da oposição. Ou seja, deram ao governo um desenho ministerial deformado em troca de forçá-lo a ficar pelo menos até o ano que vem com a estrutura aprovada por Bolsonaro.

Derrota inteira do governo aconteceu na votação do PL do marco temporal. Trata-se de um projeto que desmonta inteiramente o sistema de proteção aos direitos dos povos indígenas estabelecido pela Constituição de 1988. O projeto limita drasticamente novas demarcações de terras indígenas, com a determinação absurda de que só podem ser demarcadas terras que os indígenas provem estar ocupando na data da promulgação da Constituição. A Câmara aprovou o marco temporal por 283 favoráveis, a 155 contrários.

O projeto é inconstitucional e abusivo. Exigir que os indígenas provem estar ocupando suas terras em determinada data reescreve a história da colonização brasileira. As terras são originalmente dos indígenas. O colonizadores, de todas as épocas, da colônia, depois da Independência, nas Repúblicas, na ditadura e até hoje, invadem ocupam, desmatam e degradam suas terras, expulsam ou matam os indígenas. Se eles não estavam em determinado ponto na data da promulgação da Constituição é porque não-indígenas os expulsaram de lá.

O governo não fez qualquer esforço para evitar a aprovação, ainda na comissão mista, do substitutivo que atinge diretamente ministérios que cuidam das questões que Lula definiu como centrais para seu governo. Falou da centralidade das questões do clima, do desmatamento e dos indígenas centralidade em campanha e em suas viagens para restaurar a reputação internacional do Brasil no exterior. Ou Lula não é sincero ao dizer que estes temas não são parte central de seu terceiro mandato, ou anda tão alheio à política interna que sequer sabia da ameaça que pairava sobre as atribuições dos ministérios que afetam a credibilidade desta sua prioridade.

O projeto é inconstitucional. Ou será rejeitado no Senado ou, se os senadores não o votarem esta semana, deve ser declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal na próxima semana.

Governo dividido

O governo foi para a votação que aprovou as mudanças em sua proposta de organização dos ministérios sem orientação política precisa. O governo é minoritário na Câmara, em termos reais, embora tenha uma coalizão que controla, nominalmente, 282 cadeiras. Se entra no jogo fraco, dividido, negocia mal, perde. É o que tem acontecido. Só há uma explicação para a descoordenação no governo, faltou uma diretriz inequívoca do presidente da República.

O presidente da Câmara, Arthur Lira, já havia deixado claro que nas questões que ele não classifica como de interesse do país, o governo fica por conta própria. O que se viu é que, deixado por conta própria, a coalizão do governo se divide e se derrota. A definição de Lira sobre o que é de interesse do país é arbitrária. Ele está dizendo que a questão ambiental e indígena não interessam ao país?

Vida vivida

Lula parece estar ainda imaginando que o contexto político continua o mesmo de quando governou o Brasil, entre 2003 e 2010. Não é. Mudou radicalmente. A correlação de forças na sociedade é outra. Lula deveria ter estudado o resultado do segundo turno e olhado mais para os votos dados a seu adversário de ultradireita, depois de um governo desastroso sob todos os aspectos. A mesma dificuldade nas urnas, se reproduz no Congresso e é ela que o faz minoritário em termos reais, embora tenha maioria nominal.

O Legislativo ficou mais poderoso. Foi aumentando seu poder, pelo menos desde de 2001, com a emenda constitucional 32/2001, que alterou o artigo 62 da Constituição sobre a tramitação de medidas provisórias. O crescimento das modalidades e do valor de emendas impositivas aumentou muito o poder de barganha dos parlamentares. O orçamento secreto da gestão Bolsonaro/Lira, mudou a estrutura de preferências, que passou a valorizar mais as emendas do que cargos.

Lula tem uma coalizão líquida. Seus votos escorrem pelos dedos como pérolas de mercúrio para usar a metáfora de Camus. A eleição de 2022 produziu grande desalinhamento de preferências entre o Executivo e o Legislativo. Lula não entendeu a natureza da frente democrática que o elegeu. Ela não se limita àquelas forças que subiram em seu palanque. A frente se extende àqueles partidos que aceitaram compor sua coalizão nominal. Nos partidos que já existiam em seus governos a correlação de forças interna mudou, portanto há lideranças novas que têm tanta influência ou mais do que aquelas com as quais Lula conviveu no passado.

O presidente montou seu ministério com o PT, demais partidos da esquerda e nos outros partidos, com aliados antigos ou nomes por eles indicados. O ministério não reflete, nem representa a frente que se dispôs a apoiá-lo. Esta é uma das fontes de descontentamento que têm levado às derrotas no Congresso. Além disso Lula não parece ter entendido a maior complexidade do cenário atual, em relação àqueles em que governou o país. O Brasil e o mundo mudaram muito e os problemas globais e nacionais aumentaram e se tornaram mais difíceis de resolver.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebe o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, no Palácio do Planalto, em 29 de maio. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebe o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, no Palácio do Planalto, em 29 de maio. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Contradição ambulante

A insistência de Lula na defesa da Venezuela, abrigando a mentira de uma democracia destruída há muito anos, a equiparação entre Rússia, a invasora, e Ucrânia, a invadida, mostram incompreensão da nova geopolítica global. A estreiteza de sua abertura à articulação política, a omissão com relação à agenda do Congresso, o uso dos mesmos expedientes, como a liberação condicional e a conta-gotas das emendas, revelam que não entendeu ainda o novo contexto político-institucional e a continuidade das ameaças à governabilidade democrática.

Lula tem mostrado ambivalência em temas cruciais. Não existe caminho que leve à convivência entre exploração de petróleo na costa da Amazônia e a prioridade do meio ambiente e da proteção dos povos indígenas. Também não são compatíveis uma política mais agressiva para impedir que a mudança climática atinja graus trágicos de aquecimento global, a expansão da exploração do petróleo e o incentivo à produção de veículos movidos por motores a combustão. O único caminho de compatibilidade entre a Petrobras e a prioridade climática é direciona-la para liderar a transição energética e principalmente investir na pesquisa e desenvolvimento do hidrogênio verde. Para carros, o único incentivo que iria na mesma direção da prioridade climática seria à redução da frota fóssil com a expansão dos carros elétricos.

As contradições de Lula desorientam e dividem seu governo e são sentidas no Congresso como uma demonstração de fraqueza. Tornam a maioria parlamentar mais fugidia. Comprometem a credibilidade do posicionamento internacional do presidente e do Brasil.

* Sérgio Abranches é sociólogo, cientista político e escritor. É autor de “Presidencialismo de coalizão”. 

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