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#LITERATURA

Eu posso rir com Milan Kundera

O legado de Kundera é imenso. Muitos ainda lerão Kundera e se espantarão com ele. Muitos encontrarão caminhos pelos quais seguir em seu desejo de escrever. Muitos descobrirão todas as dimensões do amor em Kundera

Sérgio Abranches, para Headline Ideias
#LITERATURA12 de jul. de 236 min de leitura
O escritor tcheco Milan Kundera fotografado em Praga, em outubro de 1973. Foto: AFP
Sérgio Abranches, para Headline Ideias12 de jul. de 236 min de leitura

É raro encontrar um autor que surpreende por fazer da literatura a síntese daquilo que nos move no mundo das ideias. Eu sempre li muita ficção e muito ensaio, sempre gostei das criações alegóricas, das sínteses metafóricas. Li Milan Kundera pela primeira vez, creio, como a maioria, em 1984, quando saiu seu romance mais famoso, A insustentável leveza do ser. Quem não se deixaria atrair por um livro com este título intrigante? Romance ou filosofia? Romance, sem dúvida, mas com tantas dimensões de leitura que pode conter para além do romance ensaio, política, música, mitologia. A insustentável leveza do ser é, antes de tudo, uma celebração da liberdade e revela, na sua singular narrativa, a liberdade plena do escritor. Um livro culto, que ficou popular e se tornou cult. Nele encontrei a pista dessa síntese que continuo a procurar.

Quem o leu, sabe que seu começo é ensaio, mas tão cheio de alegorias e ressonâncias metafóricas, que é também ficção. Como assim? Um romance que começa com o mito do eterno retorno dizendo "O eterno retorno é uma ideia misteriosa, e Nietzsche, com essa ideia, pôs muitos filósofos em dificuldade: pensar que um dia tudo vai se repetir tal como já vivido e que essa repetição ainda vai se repetir indefinidamente! O que significa esse mito insensato?" Ele poderia começar um ensaio com este pensamento, mas começou um romance. Só pouco mais de dez páginas depois, Kundera introduzirá Tomás e Tereza, as duas personagens de sua estória.

Mais adiante, Kundera nos proporá um de seus paradoxos. Ele cultivava o paradoxo, como Borges, do labirinto. "Se o eterno retorno é o mais pesado dos fardos, nossas vidas, sobre esse pano de fundo, podem aparecer em toda a sua esplêndida leveza." E vem a pergunta, o que escolher, o peso ou a leveza? Para concluir que a contradição peso-leve é "a mais misteriosa e a mais ambígua de todas as contradições". Desta forma inesperada Kundera nos apresenta uma das chaves de sua literatura. Para mim a mais instigante de todas.

Neste romance talvez mais que nos outros, Kundera expresse a diferença entre a poética e o lirismo. Poética ele contém e é, ao mesmo tempo, quase um manifesto antilirismo. Outro paradoxo importante na narrativa de Kundera é o riso como crítica. O riso mordaz aparece envolto por uma névoa sombria. Sempre oblíquo, nunca direto. Ele é paradoxalmente externo ao romance, no entanto, sempre presente, como uma sombra, um espírito. O sopro crítico que afasta os véus a dificultar a visão do que as circunstâncias realmente significam. Em O livro do riso e do esquecimento, Kundera diz que "quando as coisas são privadas de repente de seu suposto sentido, do lugar que lhes é destinado na ordem esperada das coisas provocam-nos o riso".

Este primeiro encontro me fez buscar os outros livros de Kundera. Foi quando descobri o ensaísta. Soube, então, que havia encontrado um dos mais completos intelectuais do século 20. Kundera foi também um ensaísta magnífico. Na semana passada estive no Fliaraxá, festival literário muito agradável, no qual se tem tempo para encontrar outros escritores, conversar, trocar ideias. Fui um dos curadores junto com Afonso Borges e Tom Farias. Entre os escritores havia duas autoras indígenas, Trudruá Dorrico e Márcia Kambeba. Fiz a moderação das apresentações das duas. Conversei bastante com elas. Falamos muito de identidade, território, cultura. Lembrei-me o tempo todo de Kundera, sem saber ou suspeitar que hoje estaria escrevendo sobre ele, celebrando a vida que chegou ao seu fim.

Kundera sempre pôs o acaso em seus romances, o inesperado era para ele inseparável do viver. Com toda razão, o mundo determinado, onde tudo acontece por um desígnio, é um pesadelo totalitário. O acaso construiu minha lembrança. O encontro com as autoras indígenas não estava necessariamente escrito nas estrelas de minha vida. A morte de Kundera foi para mim uma surpresa, mesmo sabendo que ele tinha 94 anos. A lembrança de seu ensaio me veio pela impressão aguda e permanente que causou em mim. O que me veio imediatamente à memória foi o seguinte pensamento no ensaio "O Ocidente sequestrado ou a tragédia da Europa Central": "A identidade de um povo ou uma civilização se reflete e se resume no conjunto das criações espirituais que costumamos chamar 'cultura'. Se esta identidade é mortalmente ameaçada, a vida cultural se intensifica, se exacerba, e a cultura se torna o valor vivo em torno da qual todo o povo se reagrupa."

Este ensaio de Kundera reivindicava para os pequenos países da Europa Central, que estiveram sob o domínio da União Soviética, sua própria territorialidade. Eram chamados países da Europa Oriental, ou do Leste Europeu. Ele afirmava que não eram, não pertenciam àquela cultura ou àquela tradição histórica. Eram a Europa Central e sua cultura era parte da cultura Ocidental. Praga foi, antes de ser invadida pelos nazistas, uma capital de cultura fulgurante. Houve um momento em que Kafka e Einstein se encontravam em saraus lítero-musicais. Mozart amava Praga e foi nela que fez questão de estrear sua esplêndida Don Giovanni.

Este ensaio gerou um movimento que reascendeu nos pequenos países centro-europeus a consciência de suas identidades culturais e o sentido transcende de seu território. Kundera intuía a importância da ancestralidade. Por isso, não é exagero ou exotismo quando os indígenas dizem que seu extermínio também se dá pela destruição ou destituição de seu território e pela expropriação de sua cultura. É sua língua, sua cosmogonia, seus cânticos, seus relatos e seu território que lhes dão a identidade e os define como povos. Este é um exemplo do alcance das percepções ensaísticas de Kundera.

Todos os seus romances e ensaios celebraram um bem acima de todos, a liberdade. Liberdade em todas as suas formas e possibilidades, na política, no amor, no sexo, na literatura, na poesia, na música. O legado de Kundera é imenso. Todo escritor sincero influencia pessoas que os lêem e afetam o curso de suas vidas. Os grandes escritores influenciam imenso número de pessoas e sua influência atravessa gerações. Kundera me fez buscar uma forma mais literária para meus ensaios e me ensinou que não há limites para um escritor construir suas narrativas.

Muitos ainda lerão Kundera e se espantarão com ele. Muitos encontrarão a pista dos caminhos pelos quais seguir em seu desejo de escrever. Muitos encontrarão em Kundera a literatura que gostarão de ler e por ela serão levados a pensar nas multiplicidades do amar, no inesperado da vida, no sentido profundo do ser livre. Kundera que provoca o riso. Viva Kundera.

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