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Análise – Data venia, nem PEC, nem statu quo, o STF precisa de autorregulação

A PEC aprovada pelo Senado que intervém em procedimentos do STF é retaliatória, hostil ao Poder Judiciário e tem inspiração antidemocrática. Mas a Suprema Corte tem cometido abusos e pode se autorregularização reformando seu regimento

Sérgio Abranches, para Headline Ideias
#POLÍTICA23 de nov. de 238 min de leitura
Senadores comemoram aprovação da PEC que limita decisões monocráticas e pedidos de vista no Supremo Tribunal Federal (STF). Foto: Lula Marques/ Agência Brasil
Sérgio Abranches, para Headline Ideias23 de nov. de 238 min de leitura

O Senado aprovou uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que intervém em procedimentos do Supremo Tribunal Federal (STF). O senador Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, nega que seja uma retaliação ocasionada por decisões da Suprema Corte que desagradaram ao Congresso. Ele diz que o objetivo é fazer os poderes funcionarem melhor. O senador se esquece da origem da PEC. Ela é de autoria do senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR), que era da coalizão de apoio ao governo Bolsonaro. Foi apresentada por ele em 2021, ano em que Bolsonaro escalou os ataques ao STF, provocando inclusive a reação do então presidente da Corte, Luiz Fux, que se viu forçado a cancelar uma reunião entre os chefes dos três Poderes.

A PEC é parte inseparável da agenda autoritária de Bolsonaro na preparativa do terreno para o golpe que estava sendo preparado. Mal preparado, é certo, mas deixou sequelas institucionais. Não é por acaso que a PEC é tratada nos corredores do Poder Legislativo como de limites ao STF. O objetivo era iniciar um processo de imposição de restrições ao Judiciário, não uma reforma de procedimentos para torna-lo mais eficiente. O apoio do governo, ou de parte dele, não altera o DNA da PEC. Vários integrantes do governo têm razões de descontentamento com decisões do STF. Ainda assim, não é o momento, nem o caminho, menos ainda o instrumento apropriados.

O Senado tem uma agenda política por trás desta decisão. É um confronto retaliatório com o Supremo Tribunal Federal, que considera estar invadindo as prerrogativas do Legislativo. Mas é também um ato de velada hostilidade ao governo Lula. Pauta uma medida discutível, de má origem, à frente de temas relevantes e urgentes do programa macroeconômico do governo e que interessam à sociedade.

Não importa o que o Senado aprovou, nem se a Câmara dará ou não curso à medida. A conjuntura é diferente daquela em que o projeto nasceu. O presidente é outro. Os projetos de enfraquecimento institucional do período de Bolsonaro no comando do Executivo fazem parte de uma agenda rejeitada pela maioria do eleitorado e deslegitimada pela inspiração golpista revelada pelo 8 de janeiro.

Isto não quer dizer que alguns pontos presentes na PEC não correspondam a problemas reais que devam ser objeto de correção. A questão é se esta é a hora e se esta PEC tem a legitimidade de origem necessária. Ela é parte de uma agenda derrotada nas urnas e foi concebida em contexto perturbado pelo ataque de Bolsonaro às instituições, em particular ao TSE e ao STF. As investigações do 8 de janeiro trouxeram evidências importantes sobre o projeto de desmonte dos mecanismos de pesos e contrapesos da democracia.

O ministro Luis Roberto Barroso tem reagido, acentuando a impropriedade e a extemporaneidade da PEC. Tem razão em lembrar que tentativas de interferir na Suprema Corte sempre estiveram associadas aos ataques contemporâneos à democracia. Basta ver o que fazia Netanyahu antes do atentado terrorista. Buscava aprovar na Knesset a redução dos poderes da Suprema Corte. Foi o mesmo que fez, com sucesso, Viktor Orbán, na Hungria.

Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, no dia da votação da PEC 8/2021 que limita decisões ditas "monocráticas" (individuais) e pedidos de vista no Supremo Tribunal Federal (STF) e outros tribunais. Foto: Roque de Sá/Agência Senado

O que mudar

Os dois procedimentos sobre os quais há consenso sobre desvio abusivo de suas finalidades propriamente judiciais pelos ministros da corte são o pedido de vista e a decisão monocrática. As outras questões incluídas na PEC não têm cabimento. Só fariam sentido democrático em um projeto mais amplo de reforma constitucional.

O pedido de vista havia se tornado um expediente procrastinatório, que impedia decisões do plenário por anos, algumas vezes décadas.

Tornou-se um procedimento sem transparência e gerador de desconfianças sobre a intenção efetiva por trás da retenção de processos por tempo indeterminado. Pedir tempo para examinar um processo, especialmente por ministros com pouco tempo de casa, pode ser necessário para uma decisão mais estudada. Em alguns casos, diante de um voto com tese inesperada, é natural que um ministro com voto diferente já pronto sinta a necessidade de rever o processo para reexaminar seu voto à luz de novos argumentos doutrinários. É legítimo e democrático que o faça. Mas, em ambos os casos, não há necessidade de um prazo maior do que três meses.

O mau uso do pedido de vista foi superado em parte pela mudança regimental introduzida pela ministra Rosa Weber, então presidente do STF, que o limitou a 90 dias. Mas a regra não alcança a possibilidade de ministros pedirem vista de um processo em série para evitar seu julgamento. A ideia de vista coletiva, usada no Legislativo, pode ser um procedimento utilizado pelo STF, guardadas as peculiaridades técnicas do processo judicial, comparado a um projeto de lei. Há diferenças técnicas que requerem adaptação da ideia ao processo judicial. O relator retirou este ponto da PEC, por acordo.

O outro procedimento que foi muito desvirtuado pela prática recente do STF é a medida cautelar tomada monocraticamente pelo ministro relator de mandado de segurança ou outro instrumento cabível. Trata-se de uma ferramenta essencial para resguardar direitos em litígio ameaçados de prejuízo irreversível diante de uma lei ou decisão recém-tomada. Neste caso, a decisão liminar se impõe e, diante da iminência do dano, ela só pode ser monocrática.

O princípio doutrinário da medida cautelar é límpido, incontroverso e está consolidado há muito. O juiz pode concedê-la liminarmente caso a situação seja grave, urgente e haja perigo de dano iminente, o periculum in mora, e que este dano seja irreparável se consumado. É preciso, ainda, que a alegação seja verossímil. A regra, fixada por exemplo pelo artigo 273 do Código de Processo Civil, é direta e literal. Exige, ainda, que o juiz indique, de modo nítido e preciso, as razões do seu convencimento para tomar tal decisão.

Tenho certeza de que um exame superficial das decisões monocráticas de ministros do STF nos últimos anos mostrará que muitas extrapolaram os limites do regramento para medidas cautelares e liminares. Ou seja, antes mesmo de dar curso ao processo. São julgados que não examinam o mérito, a justiça ou a correção da demanda ou decisão que estão suspendendo liminarmente. As razões necessárias e suficientes para uma medida de precaução tomada liminar e monocraticamente já estão perfeitamente definidas nos códigos de processo.

O conteúdo, o mérito, da decisão, se é constitucional, legal, ou não, deve ser obrigatoriamente objeto de deliberação colegiada. Há, portanto, razões relevantes para que não se proíba decisões cautelares e liminares de natureza monocrática. Como há razões abundantes para que elas sejam devolvidas ao veio original da medida cautelar contida nos códigos legais para que se limitem estritamente ao estabelecido e mais que consolidado na doutrina e na jurisprudência.

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, participa do seminário 35 anos da Constituição Federal, no STF. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

O monocratismo

O argumento acima diz respeito à necessidade de medidas de precaução tomadas pelo ministro ou juiz relator, de imediato, no início mesmo do processo. Mas não esgota o tema do abuso das decisões monocráticas. Decisões monocráticas em um tribunal colegiado devem se restringir às medidas cautelares, observados os limites acima.

Um tribunal colegiado é o retrato do lugar-comum, “cada juiz, uma sentença”. Não há como ser diferente. Cada ministro tem uma prática, uma determinada visão da doutrina jurídica, interesses, valores, crenças, ideologia. Não existe a possibilidade da isenção, pois sempre há margem à interpretação da doutrina. Cada um verá o processo de modo distinto.

A solução clássica para a inevitável discricionariedade da decisão judicial individual é o colegiado. Ele não tem o condão de transformar o que é idiossincrático em uma decisão isenta e objetiva. Mas pode moderar as individualidades. O sociólogo Max Weber demonstrou que nas relações humanas a objetividade possível é a intersubjetividade e é ela a forma mais aproximada de isenção que o colegiado pode gerar.

Nas decisões da Suprema Corte o colegiado é insubstituível, sob pena de danos irreparáveis aos direitos das partes envolvidas ao devido processo legal. Inclusive as câmaras, uma criação recente, não poderiam tomar decisões definitivas. Pensadas para dar agilidade aos processos, não se considerou que amputariam a colegialidade. Houve muitos casos recentes de decisões discutíveis e parciais das câmaras pela limitada colegialidade. Elas degradam a qualidade do julgamento da Suprema Corte.

Data venia, senador, a PEC retirada da agenda antidemocrática de Bolsonaro não pode ser saneada de seus maus propósitos. Ficará marcada como medida retaliatória e terá sua credibilidade e legitimidade permanentemente maculadas por suas origens e motivação.

Data venia, ministro, o statu quo é insustentável. São muitos os desvios observados nas condutas de integrantes do tribunal. Houve decisões procrastinatórias. Deliberações monocráticas discricionárias, na sua maior parte destituídas dos atributos requeridos para medidas cautelares. O caminho democrático seria iniciar imediata revisão regimental, para que a própria Suprema Corte faça a correção de seus desvios e estabeleça procedimentos de autorregulação que limitem e contenham o comportamento judicial da corte aos limites estritos da legitimidade institucional.

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