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Clima quente

O IPCC, painel de cientistas do clima da ONU, é claro em seu novo relatório. A mudança climática já nos afeta e tem causado muitos danos no suprimento de água e alimentos, matado e desalojado milhares de pessoas com enchentes e ondas de calor. E vai piorar, se não adotarmos já medidas radicais

Sérgio Abranches, para Headline Ideias
#CLIMA23 de mar. de 2311 min de leitura
Nesta foto de arquivo, um urso polar é visto em blocos de gelo no Canal Britânico no arquipélago de Franz Josef Land em 16 de agosto de 2021. Foto: Ekaterina Ansimova/AFP
Sérgio Abranches, para Headline Ideias23 de mar. de 2311 min de leitura

O novo relatório do IPCC não traz boas notícias para a humanidade. Oferece alguma esperança, buscando ser menos amedrontador e mais motivador. O relatório-síntese que circula é meticulosamente negociado com os diplomatas e termina por usar palavras menos fortes do que os climatologistas usam quando falam do seu trabalho. O documento sem muitas papas na língua ainda está por sair. É o relatório de avaliação completo, um calhamaço em puro dialeto científico, sem muitas concessões, pensado para ser lido por cientistas. Nós mortais comuns devemos nos contentar com o relatório-síntese que já não é uma peça de prosa lá muito fácil de ler.

O que faz o IPCC? Divididos em vários grupos de trabalho seus cientistas revisam aproximadamente uma década de trabalhos científicos sobre mudança climática e suas consequências, com ênfase nas descobertas mais recentes. Não é qualquer trabalho que entra nesse escrutínio, uma metanálise, em linguagem mais científica. Só entram pesquisas de cientistas de centros acreditados, publicados em publicações revisadas por cientistas, "peer-reviewed". O objetivo é consolidar o consenso científico sobre mudança climática.

Quando cobria mudança climática para a coluna que escrevia para O Eco e nos comentários na CBN, no início dos anos 2000, o IPCC estava no seu terceiro relatório e na véspera de divulgar o quarto. Era comum entrevistarmos climatologistas para tirar dúvidas sobre aquela nomenclatura ainda estranha para nós e entender do que falavam quando nos ameaçavam com a ocorrência de eventos climáticos extremos. O horizonte com que se trabalhava era o final deste século e o ponto de corte para se reduzir as chances de um cataclismo climático situavam-se em algum ponto de sua segunda metade. Algo como final dos anos 50, início dos anos 60.

A mudança climática está aqui

Lembro-me que, em 2005, quando o furacão Katrina arrasou os bairros pobres de New Orleans, perguntei a um deles se já era a mudança climática. A resposta foi que não se podia atribuir um evento em particular à mudança climática. O "paradoxo da atribuição" rondou as entrevistas de climatologistas por muito tempo.

O que nos diz o relatório atual, de número 6, diz que "a mudança climática causou danos substanciais e perdas crescentemente irreversíveis em ecossistemas terrestres, de água doce, 'criosférico', costeiros e nos ecossistemas dos oceanos". Uma afirmação classificada como de alta confiança, a mais alta no ranking de probabilidade científica no código do IPCC. Esse palavrão, criosférico, que nem está no dicionário, se refere ao gelo permanente (permafrost) que está deixando de ser perene. Um dos impactos perto do irreversível será hidrológico e levará à diminuição dos glaciares e dos ecossistemas árticos, por causa do derretimento do permafrost.

O IPCC afirma, sem rodeios, que a mudança climática já está entre nós e causou perdas disseminadas e substanciais em praticamente todos os aspectos da vida humana no planeta. Os impactos adicionais em gerações futuras dependem das escolhas que fizermos agora.

E aquele ponto de não retorno? Passou dos meados dos anos 50, para os primeiros anos da década de 30. Para ser mais preciso, nosso horizonte de esperança, hoje, alcança apenas os próximos dez anos. O IPCC afirma que a Terra ultrapassará a linha crítica do aquecimento global em algum momento na próxima década. As nações terão que adotar medidas drásticas para evitar o cataclismo climático.

Na primeira metade da década de 30, a temperatura média global terá aumentado em 1,5°C, se continuarmos a emitir gases estufa como fazemos hoje. É preciso lembrar que no Acordo de Paris quase 200 países concordaram em fazer de tudo para evitar que se chegue a um aumento de temperatura desta magnitude e, se ela acontecer, evitar que chegue a 2°C. Significa que podemos ficar tranquilos e deixar chegar a 2°C?

De jeito nenhum. O IPCC nos alerta que cada fração de temperatura conta. Um aquecimento médio de 1,5°C já produzirá um aumento muito forte nos eventos climáticos extremos e nos desastres humanos a eles associados. Mas, um aumento de 0,5°C acima do limite acertado em Paris, com base na ciência, representaria uma mudança brutal. Ondas de calor catastróficas, enchentes devastadoras, secas de longa duração, colapso de lavouras e extinção de espécies.

A humanidade terá muita dificuldade para suportar esses desastres. Os impactos já serão muito sérios se nos mantivermos dentro dos "limites do pacto de Paris", de 1,5°C. Afetarão a saúde, a produção de alimentos, a provisão de água potável. E tudo isso será desigualmente distribuído pelo planeta. Não só do ponto de vista da certeza de que os mais vulneráveis sofrerão desproporcionalmente mais. Haverá pontos do planeta onde a vida ficará praticamente impossível. Desses lugares sairão os imigrantes climáticos. O conflito, a discriminação e a violência aumentarão.

Não resta uma esperança?

Há esperança. Mas, antes é bom levar em conta que não estamos fazendo o necessário sequer para mantermos a meta do Acordo de Paris. Há, ainda, uma chance de evitarmos o pior, dizem os cientistas. Para aproveitar esta derradeira oportunidade — dez anos, lembrem-se, passam voando — os países que emitem a maior parte dos gases estufa devem agir juntos e de forma drástica.

Não pensem que basta a ação do G5 ou do G20 apenas. Será preciso o esforço conjunto dos talvez mais de 50 países que contribuem, de uma forma ou outra, para o crescimento de nossas emissões. Elas atingiram o nível mais alto dos últimos 2 milhões de anos.

Esses países terão que reduzir pela metade as emissões atuais de gases estufa até 2030 e zerar as emissões de carbono até os primeiros anos de 2050. Aí, teremos 50% de chance de limitar o aquecimento global médio a 1,5°C. Estas providências apenas aumentam nossa possiblidade de ficar nesse patamar de aquecimento médio global. Para obtermos maior probabilidade de evitar o apocalipse climático, teríamos que zerar as emissões antes do final dos anos 30. A partir daí, idealmente, tirar carbono da atmosfera.

Temos as tecnologias necessárias e os meios para cumprir a primeira tarefa, de cortar pela metade nossas emissões até 2030 e eliminá-las até, digamos 2050-2053. Podemos fazer mais e zerá-las antes do final de década de 30.

Mas não temos boas tecnologias de captura de carbono. A mais viável hoje retira carbono da atmosfera e o estoca no subsolo. Não nos livra do perigo de vazamentos. Eu não apostaria muito neste caminho para reduzir a concentração de gases de efeito estufa na atmosfera. Será preciso investir em inovações tecnológicas e no reflorestamento para termos reais possibilidades de tirar carbono da atmosfera.

Uma foto tirada em 22 de março de 2023 mostra um peixe morto deitado em terra seca devido ao efeito da seca no reservatório de La Vinuela, Málaga, na Espanha. Foto: Jorge Guerrero/AFP

Qual a dificuldade para fazermos o que é sensato?

Nossa dificuldade é política. Nas reuniões da cúpula do clima, as COPs, os impasses duram anos, às vezes uma década para serem removidos. As decisões exigem a unanimidade de quase 200 países, muitos dos quais nem se falam e alguns estão em guerra. Cobri todo o longo caminho até o Acordo de Paris. A cada ano, se comemorava um avanço incremental. Houve anos sem avanço algum. As decisões unânimes acabam forçando que se contente com um mínimo denominador comum. E o ritmo da mudança climática nos exige que consigamos ir além do máximo denominador comum.

A primeira virada, aconteceu em Copenhague. Copenhague foi uma decepção, mas não foi um fiasco. Escrevi um livro explicando o que aconteceu na capital da Dinamarca. A cúpula de 2009 foi um microcosmo da política global do clima. Empresas de petróleo patrocinaram o negacionismo e intrigas para desacreditar o IPCC. As expectativas eram muito elevadas. Seria a primeira cúpula climática de Obama. Esperava-se que o acordo para substituir Kyoto fosse aprovado lá. Não foi. Mas houve um passo fundamental. Os dois grandes países que se recusavam a cooperar, os Estados Unidos, presididos por Obama, que se negavam a cooperar com George W. Bush, e a China de Hu Jintao, mudaram de posição, do não para o sim. Mas o compromisso a que chegaram os chefes de estado e governo, em uma inédita negociação direta entre eles, sem intermediação diplomática, foi vetado por um pequeno grupo de países periféricos.

No México, em Cancún, em 2010, o que foi vetado em Copenhague e ampliado nas negociações foi incorporado à Convenção do Clima. Numa última e tensa reunião, como escrevi na época, a presidente da COP 16, Patricia Espinosa Cantellano, então chanceler do México, bloqueou a tentativa de veto e reinterpretou a regra da unanimidade para aprovar os acordos de Cancún contra o voto de um punhado irrelevante de países.

Em Durban, 2011, vi os diplomatas desesperados com os métodos da presidente da COP 17 Maite Nkoana-Mashabane, a chanceler da África do Sul. Diante do impasse, muito habilidosa, ela determinou que fizessem uma Indaba. A indaba é o processo de deliberação comunitária adotado secularmente pelos Zulu, grupo étnico a que ela pertence. Todos se reúnem numa roda de conversa, até que se rompa o impasse. Deu certo e, para evitar novos impasses e outras indabas, o grupo de países líderes Estados Unidos, China, o Brasil e a África do Sul, o anfitrião que presidia a COP, negociou uma inversão da regra da Convenção do Clima.

A convenção propunha que as metas seriam fixadas "de cima para baixo". As metas definidas na cúpula do Clima seriam impositivas. Era esta compulsoriedade de "fora" que fazia chineses e americanos rejeitarem um acordo. O acordo de Durban fixou que seriam "de baixo para cima". Os países definiriam seus compromissos, que seriam registrados e monitorados de forma não intervencionista pela convenção. Foi esta virada de regra que abriu o caminho para Paris.

Em Paris, na COP 21, em 2016, John Kerry, na época secretário de Estado de Obama, teve participação ativa no convencimento de países recalcitrantes. A competente diplomacia francesa ia incansavelmente desfazendo os nós que impediam a continuação das negociações. Dava a impressão que os nós se formavam ao longo dos dias de extenuantes conversas e eram desfeitos à noite. Era comum eu comentar na CBN, no final do dia, sobre os impasses que se haviam formado e anunciar, no comentário da manhã, que eles haviam sido removidos.

Com o Acordo de Paris, os países definiram a meta de 1,5°C e cada um registrou seus "compromissos nacionais" de redução de gases estufa. Poucos estão cumprindo o que prometeram.

O bloqueio fóssil

Em cada país, a força dos lobbies das indústrias fósseis e a atração dos petrodólares cuida de reduzir o ímpeto dos programas climáticos locais. A renda fácil e ilusória, além de volátil, gerada pelos barris de petróleo, faz muito líder convencido de fazer de tudo para reduzir as emissões aceitar um compromisso fatal para o país no médio prazo. Trata-se de uma aliança poderosa entre lideranças políticas dominantes e os interesses das gigantes privadas e estatais do petróleo.

Basta ver a dificuldade do governo Lula em acabar com os subsídios aos combustíveis fósseis, apesar de jurar de mãos juntas que se converteu à economia de baixo carbono. Mas, e a Petrobras? Vamos deixar de explorar o pré-sal e abrir mão do dinheiro que ele pode nos trazer? E os péssimos empregos da mineração do carvão, deixaremos que se percam? O nosso carvão é o pior que existe, o mais poluente, mas suga um bilhão de reais por ano, todo ano, seja o governo de esquerda, seja de extrema-direita, acredite ou negue a mudança climática.

O que dizer do acordo de cooperação comercial recém assinado pelos presidente da China, Xi Jinping, e da Rússia, Vladmir Putin, que levou o presidente russo a dizer que está pronto para aumentar suas vendas de petróleo aos chineses? A guerra resultante da invasão da Ucrânia por Putin provocou, como efeito colateral, uma nova corrida doméstica aos combustíveis fósseis, com a interrupção das compras de petróleo russo pelos países da OTAN.

O presidente Biden aprovou o projeto Willow, da ConocoPhillips, no Alaska. Um empreendimento de elevado risco ambiental, numa região sensível, que vai produzir 600 milhões de barris por três décadas.

Hoje, todo o esforço genuíno que fazemos é como o trabalho de Penélope. O que o IPCC mostra é que as reduções de emissões que conseguimos com mudança na matriz energética são menores do que os aumentos de emissões com desmatamento, energia, indústria, transportes, agricultura e construção civil. O que reduzimos de emissões com enorme esforço, superamos em seguida, emitindo mais. Por isso, o aquecimento global continuará a aumentar até 2040 e continuaremos a pagar o preço da nossa insensatez. Essas contradições nas políticas de todos os grandes emissores são o principal obstáculo no caminho das metas que nos podem salvar.

Não gostaram do final? Pois dá para reescrevê-lo nos próximos dez anos. Pressionando a mais não poder os governos a pararem de se entregar aos interesses fósseis e começarem já o trabalho a sério de evitar a catástrofe. Temos a tecnologia e os recursos para isso. Além de pressionar, façamos nossa parte, mudando nosso padrão de consumo, demitindo nas eleições os políticos fósseis e boicotando todas as empresas que dizem ter governança ambiental e social (ESG) e é pura fachada para sua verdadeira personalidade fóssil.

* Sérgio Abranches é sociólogo, cientista político e escritor. É autor de “Presidencialismo de coalizão”. 

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