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#MEGADIVERSIDADE

Brasil, qual é a tua cara, qual é o teu sonho?

A pergunta que faço ao Brasil, diante das grandes mudanças globais em curso, é quem você acha que é e quem você quer ser no futuro? Só teremos futuro como país multiétnico, que preservou sua megadiversidade social e biológica

Sérgio Abranches, para Headline Ideias
#MEGADIVERSIDADE19 de jul. de 239 min de leitura
O indígena Marque Bare sobe em um açaí na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Puranga-Conquista durante uma expedição organizada pelo Ministério do Meio Ambiente do Brasil ao Mosaico do Baixo Rio Negro, no Amazonas, em 8 de julho de 2023. Fotos: Michael Dantas/AFP
Sérgio Abranches, para Headline Ideias19 de jul. de 239 min de leitura

A acadêmica Rosiska Darcy de Oliveira me convidou para falar sobre “Que perguntas o Brasil deve responder” em mesa-redonda com ela, Geraldo Carneiro, também da ABL, e Bia Lessa. Achei intrigante a ideia de propor perguntas ao Brasil. Por coincidência, nas últimas semanas, eu vinha pensando muito em algumas questões, eu diria existenciais, sobre nossa trajetória como Nação.

Discutimos os problemas do Brasil em várias mesas no 11º Festival Literário de Araxá, o Fliaraxá, do qual Afonso Borges, Tom Farias e eu fomos curadores. Um festival marcado pela diversidade e qualidade de escritoras e escritores, negros, indígenas e brancos. Meu encanto, uma vez mais, foi com as óbvias virtudes da sociedade pluriétnica, na qual as mulheres são mais da metade de uma população majoritariamente negra e os indígenas uma rica multiplicidade de povos originários. Falamos do Brasil, conversando sobre como a literatura brasileira é diversa, criativa e vive um ótimo momento.

Óbvias virtudes que já deveriam ter imunizado nossa cultura contra o racismo e o machismo estruturais. Que já deveriam ter convencido os brasileiros de que nossa verdadeira riqueza é termos significativa presença de diferentes etnias originárias que ainda conservam saberes ancestrais sobre nossa biodiversidade.

Nossa megadiversidade social é a fonte de nossos poderes sutis, da nossa beleza, da nossa música, da nossa literatura. É ela que alimenta nossa criatividade, fortalece nossa resistência e aumenta nossa adaptabilidade às mudanças.

Nossa megadiversidade biológica é um tesouro natural tão mais valioso, quanto melhor preservado. Ela é base desse poder sutil que permite sejamos ouvidos nos encontros multilaterais sobre o clima, a diversidade biológica, as baleias. E é por causa desse soft power que também temos voz entre os países que detêm o poder militar do mundo, o hard power

Brasil megadiverso

O Brasil não parece ter noção de quem ele de fato é e que futuro construirá com suas escolhas coletivas. É, portanto, a primeira pergunta que faço ao Brasil. Quem você acha que é? Quando você se reconhecerá como um estado multiétnico, abraçando sua megadiversidade social?

É evidente que somos uma nação multiétnica e muito diversa. Temos 305 etnias originárias, que falam 274 línguas. A população negra é 56% da população total. As mulheres são 51%. A população branca tem forte influência da imigração europeia. Um país com esta composição demográfica se qualifica sociologicamente como nação com megadiversidade social.

Do mesmo modo que não se reconhece na sua megadiversidade social e étnica, o Brasil não se entende como um país biologicamente megadiverso. Ele destrói sua biodiversidade como se ela não tivesse valor algum.

Russell Mittermeier, PhD em antropologia biológica, ganhador do prêmio Benjamin Franklin, cunhou o conceito de megadiversidade e classificou os países dotados desta qualidade. Ele apresentou o conceito, pela primeira vez, em 1988, numa conferência sobre biodiversidade na Smithsonian Institution. Sua concepção se tornou uma ferramenta essencial na definição de prioridades para a conservação das espécies. Os países megadiversos são aqueles que têm os maiores índices de biodiversidade com o maior número de espécies endêmicas.

Mittermeier tem como foco particular de sua atividade científica a descoberta e descrição de espécies ainda desconhecidas pela ciência. Foram, até agora, 18 novas espécies, sete macacos, seis lêmures, dois tarseiros, lemurídeos com tarsos alongados e três tartarugas. Além disso, oito espécies o homenageiam em seus nomes, três sapos, um lagarto, um macaco saki e uma formiga.

Este desempenho, além de sua vasta produção bibliográfica, dá credibilidade científica a seu conceito de megadiversidade. O Brasil é classificado por ele como o primeiro dos dezoito países megadiversos.

Retrocesso

No governo Bolsonaro, o desmatamento aumentou na Amazônia, no Cerrado e na Mata Atlântica. A violência contra os indígenas chegou a níveis que caracterizam o genocídio. O flagelo dos Yanomami revelado nos primeiros dias do governo Lula foi apenas um exemplo trágico da invasão de terras indígenas, assassinatos e destruição ambiental promovidos por seu antecessor.

Nos últimos quatro anos, retrocedemos de uma situação que já não era boa no reconhecimento dos direitos e da identidade de nossas maiorias e de nossos povos indígenas e na destruição de nossas megadiversidades. Mulheres e negros formam a maioria de nosso povo sistematicamente ausentada da representação. 

Os indígenas já sofriam com o avanço ilegal de garimpeiros, madeireiros, grileiros, pescadores, quando Bolsonaro estimulou as invasões com sua defesa dos garimpos e da ocupação da Amazônia pela pecuária, soja e mineração.

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública registra que praticamente todos os 10 municípios com taxas médias de mortes violentas intencionais superiores a 100 por 100 mil habitantes estão localizados ao lado ou próximos a Terras Indígenas e das fronteiras com os demais países da Panamazônia. O que se viu, nos anos de desgoverno de Bolsonaro, foi um verdadeiro genocídio, mais um, e a violação dos territórios sagrados dos povos originários.

 A atitude racista de Bolsonaro contribuiu para aumentar a violência contra os negros, que já caracterizava genocídio de seus mais jovens. De acordo com o Anuário, os jovens de idade entre 16 e 29 anos são desproporcionalmente atingidos por mortes violentas. Eles são 77,6%, das vítimas de homicídios dolosos e 84,1% das vítimas de mortes decorrentes de intervenções policiais. E são quase todos pretos, como diz Caetano em sua Haiti.

Não tem como esconder, 77,9% das vítimas de assassinatos são negras, 50% têm entre 12 e 29 anos e 91,3% são do sexo masculino. Se incluímos crianças a partir de 10 anos, 91% das vítimas e 83% dos alvos das armas de fogo são negros do sexo masculino. É o retrato do extermínio de meninos e jovens adultos negros no Brasil.

Afirmações e comportamentos misóginos do homem que ocupou a Presidência da República entre 2019 e 2022 levaram ao aumento da violência doméstica contra as mulheres. Informa o Anuário que praticamente todos os indicadores relativos à violência contra mulheres apresentaram crescimento: houve um aumento de 3,3% na taxa de registros de ameaça e de 0,6% na taxa de lesões corporais dolosas em contexto de violência doméstica, entre 2020 e 2021. Os registros de crimes de assédio sexual e importunação sexual cresceram 6,6% e 17,8%, respectivamente.

Democracia falha

A votação para Bolsonaro no primeiro turno de 2022 mostrou que uma parcela significativa dos brasileiros põe outros valores acima da democracia. Essa votação, após todo o desgoverno na pandemia, mostrou que o Brasil não é uma sociedade solidária, muito menos igualitária. Somos uma democracia eleitoral avançada, mas não somos uma nação totalmente democrática.

Um país que discrimina e mata jovens negros, extermina indígenas, exclui e estupra mulheres não pode se considerar uma democracia. Os negros são, como eu disse, 56% da população e estão desrepresentados no Congresso, em todas as posições de poder, públicas e privadas. A maioria ainda luta para se libertar da pobreza e conquistar o que Hannah Arendt chamou de liberdade para ser livre.

As mulheres, 51% da população, têm participação minúscula na elite do poder. Pior ainda, os partidos que não alcançaram a cota mínima de representação feminina mentem nas propagandas gratuitas na TV, usando mulheres para fingir que elas têm influência nas decisões partidárias. Não têm.

São partidos masculinos e machistas. Mentem em público, enquanto tentam passar no Congresso vergonhosa anistia para o descumprimento da lei que estabeleceu cota de 30% de mulheres, bem inferior aos 51% que representam na população.

Um dado basta: nós homens brancos somos aproximadamente 23% da população brasileira. Mas somos maioria na elite do poder, na política, na economia, na magistratura, na diplomacia, na elite cultural. Em síntese somos hegemônicos.

A mentalidade racista e patriarcal que persiste entre nós, associada à visão colonial que inferioriza os indígenas é incompatível com a plenitude democrática.

A democracia sem solidariedade social não é uma democracia plena. Para termos democracia plena no Brasil, ela haverá de ser multiétnica, igualitária por raça e por gênero.

Quem você quer ser no futuro Brasil?

Finalmente, perguntaria ao Brasil quem você pretende ser após a metamorfose global na qual estamos? Todos os países terão que se perguntar como pretendem sair da metamorfose.

A metáfora da metamorfose, sugerida pelo sociólogo alemão Ulrich Beck, serve para diferenciar o processo em que estamos de transformações que mudam partes do sistema social, enquanto outras permanecem como estão. Na metamorfose, todas as partes dos sistemas sociais mudarão.

O futuro pós-metamorfose será uma combinação de mudanças tectônicas — profundas, estruturais, globais e inexoráveis — e nossas escolhas sobre como nos aproveitaremos das mutações aproveitáveis e como nos adaptaremos àquelas inevitáveis e das quais não se pode tirar proveito. É o caso, por exemplo, da mudança climática.

No caso do Brasil, é preciso saber, antes de tudo, se ele quer atravessar essas mudanças carregando para o futuro o espírito da casa-grande que nos assombra desde a colônia?

Na casa-grande estavam o patriarcado, matriz do machismo, o escravismo, matriz do racismo estrutural, e o aldeamento dos indígenas "pacificados", matriz do extermínio e do desrespeito à soberania dos povos sobre suas culturas e os territórios onde estão suas terras sagradas.

Descartaremos a criatividade e a percepção diferenciada do mundo dos negros na construção desse Brasil do futuro? Deixaremos a parte feminina e a parte negra de nós, as maiores partes de nós, fora da definição de quem seremos no futuro? Queremos entrar nesse novo mundo, sem a sabedoria daqueles que conhecem e manejaram as florestas por milhares de anos? Imaginamos ter algum futuro destituídos de nosso patrimônio natural que nos faz o maior país megadiverso do mundo?

Queremos ou não a Amazônia, o Cerrado e a Mata Atlântica preservados para nos tornarmos a primeira e maior bioeconomia do mundo? Para aproveitarmos as oportunidades que se abrem para os países megadiversos nas novas economias em emergência, precisamos dos saberes da floresta. E quem tem esses saberes da floresta, essenciais para a bioeconomia do futuro? Nossos povos originários. Os cientistas mais conscientes consultam esses saberes para acelerar a ciência que pode ser a base da Amazônia bioindustrial.

A chave do bom futuro

Para desvendarmos toda a riqueza guardada em nossas matas, precisaremos dos saberes ancestrais dos povos indígenas, cujos antepassados vieram manejando as florestas para preservá-las e atender às necessidades de seus habitantes, muito antes da chegada dos colonizadores portugueses e espanhóis.

Precisamos da força criativa e da resistência dos negros brasileiros e dos quilombolas, que também conhecem seus territórios muito melhor do que nós. Precisamos de todas as nossas partes íntegras e respeitadas, para desenhar um futuro que valha a pena.

Para mobilizar toda a sua megadiversidade e criatividade, o Brasil terá que aprender as virtudes da tolerância com o outro, com o diferente. E a tendência é que aumente a população de imigrantes e, portanto, nossa sociodiversidade.

O que temos de maior valor para atravessar, com sucesso, a metamorfose global, que alcança a todos os países e todos os povos, é nossa dupla megadiversidade. Como país megadiverso, social e biologicamente, somos grandes e temos futuro. Se não, somos um país com alto risco de insucesso.

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