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Brasil em estado de crise política

As evidências de que a questão militar está longe de ter solução deixam o país em estado de crise. O espectro da tutela militar continua a rondar a democracia brasileira

Sérgio Abranches, para Headline Ideias
#POLÍTICA19 de jan. de 235 min de leitura
Senhora segura um cartaz com fotos de crianças vítimas da violência do Estado durante a ditadura militar (1964-85). Foto: Daniel Marenco/HDLN
Sérgio Abranches, para Headline Ideias19 de jan. de 235 min de leitura

A política brasileira tem vivido ciclicamente momentos em que a tutela militar leva a democracia à iminência de ruptura. Há numerosos casos de "veto" militar, ou de ajustamento de decisões da presidência da República para não desagradar os militares.

Esta situação decorre da própria forma pela qual foi negociada a democratização, que culminou na lei da anistia em benefício dos militares envolvidos na repressão violenta, sequestro, tortura e morte de opositores à ditadura militar. Se quisermos buscar as raízes originais do envolvimento militar na política, vamos encontrá-las no golpe que instituiu a República, uma aliança entre militares e senhores de terra inconformados com a abolição da escravatura. Mas, a lei da anistia e o artigo 142 da Constituição são o marco da tutela militar sobre a democracia, renovada pelos constituintes de 1988.

Não há registro de fatos similares aos acampamentos golpistas durante mais de um mês no entorno dos quartéis que tenham sido tolerados pelos militares. Ao contrário, qualquer um que tenha tentado filmar, fotografar ou fazer qualquer outra atividade nas imediações dos quartéis terá sido abordado pelos soldados encarregados de sua segurança. O perímetro do entorno dos quartéis é área de segurança militar. Por isso, quando a PM tentou desbaratar os acampamentos, somente uma ordem do comando militar do quartel poderia impedi-la. Foi o que ocorreu. O recuo da polícia, que cumpria ordem do poder civil, é um exemplo, dos incontáveis, da "cautela" com que este trata os militares.

O presidente Lula agiu muito certo ao escolher a intervenção na secretaria de Segurança do governo do Distrito Federal, em lugar de optar por uma GLO, operação de garantia da lei e da ordem que implicaria em intervenção militar. Foi uma GLO no Rio de Janeiro, decretada pelo então presidente Michel Temer, que deu prestígio ao general Braga Neto, qualificando-o para ser dos principais aliados graduados de Bolsonaro na tentativa continuada de golpe e no incitamento de atos golpistas e de violência política. As operações de GLO são a materialização da cunha militarista na Constituição de 1988. O historiador Francisco Teixeira, da UFRJ, e o politólogo João Roberto Martins Filho, da UFSCar, trataram do efeito do uso da GLO em entrevista para o jornalista Caio Sartori, do Valor.

Neste momento, os militares estão mais na defensiva, embora não se deva subestimar o grau de comprometimento do alto oficialato militar na rejeição golpista ao governo legitimamente constituído do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O ministro da Defesa, José Múcio, falhou na avaliação desse grau de envolvimento dos militares na persistência dos acampamentos e no seu funcionamento como sementeiras do golpe. O politólogo Octavio Amorim Neto tem razão em dizer, em entrevista também a Caio Sartori, do Valor, que a elite política civil brasileira tem sido tímida e insegura ao lidar com as Forças Armadas. Um fato também ressaltado por Francisco Teixeira e João Roberto. A crônica dessa "timidez", por um lado, e da tutela ostensiva ou encoberta dos militares foi muito bem feita pelo jornalista Fábio Victor em seu livro Poder camuflado: os militares e a política, do fim da ditadura à aliança com Bolsonaro (Companhia das Letras, 2022).

A questão militar é antiga e profunda. Eles sempre se viram como herdeiros do poder moderador imperial, que vigorou por todo o Reinado. Hoje Lula tem capacidade de se impor diante de uma corporação militar tisnada pelo golpismo mal-sucedido de Bolsonaro, no qual embarcou da forma mais insensata possível. Foi um erro de avaliação, seja porque superestimaram as capacidades de Bolsonaro, notoriamente limitadas, seja porque imaginaram que seria controlado pelos generais Mourão, Heleno, Braga Neto e Luiz Eduardo Ramos. O primeiro, foi isolado por Bolsonaro e se afastou do jogo para manter um papel independente, mas secundário. Agora, senador eleito, terá uma visão de dentro do jogo político e descobrirá que é mais complexo e mais inteligente do que presumia. Os outros dois, Braga Neto e Ramos, se tornaram marionetes do teatro de faz-de-conta de Bolsonaro, participando de episódios como bufões. No conjunto, Bolsonaro e sua entourage foram a personificação da pequenez moral e política. Que as corporações militares tenham embarcado na aventura bolsonarista e se mantido nela, apesar das repetidas demonstrações de incompetência e desvirtude política e administrativa, pode ser um sinal de deterioração da formação do próprio oficialato.

Lula dá posse ao ministro da Defesa, José Múcio, no Palácio do Planalto, em Brasília, em 1º de janeiro. Foto: Sérgio Lima/AFP
Lula e o ministro da Defesa, José Múcio, no Palácio do Planalto durante a posse presidencial, em 1º de janeiro. Foto: Sérgio Lima/AFP

Lula está hoje, na presidência e como vítima do vandalismo político consentido pelos militares, em posição superior e pode, pela primeira vez, enquadrar os militares, demandando satisfação e reparação pela responsabilidade das Forças Armadas nos desmandos, violências à Constituição e destruição patrimonial. Seria um começo. Mas, é improvável que vá além das declarações de que há indícios de conivência dos militares. O ministro José Múcio já opera para pôr panos quentes. Os políticos brasileiros, entre eles todos os que ocuparam a presidência da República, tratam os militares com luvas de pelica.

Anuncia-se encontro de Lula com os chefes militares, não para serem enquadrados pelo poder civil, nem para se desculparem com Lula por todas as ofensas e grosseiras, inclusive nas transmissões de cargo, mas para discutir investimentos para a modernização das forças. Autoriza a leitura de que os militares mantêm a democracia brasileira refém e vão ao palácio para receber o resgate provisório. Uma forma de pagamento para mantê-la segura.

* Sérgio Abranches é sociólogo, cientista político e escritor. É autor de “Presidencialismo de coalizão”.

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