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Bolsonaro inelegível por abuso de poder

Por maioria de cinco votos a dois, o TSE tornou Bolsonaro inelegível por oito anos. Uma decisão jurídica com muitas implicações políticas. Ele era a única liderança da ultradireita com alcance eleitoral nacional

Sérgio Abranches , para Headline Ideias
#POLÍTICA30 de jun. de 238 min de leitura
O ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro fala com jornalistas em Belo Horizonte, Minas Gerais, após o Tribunal Superior Eleitoral decidir sobre sua inelegibilidade por oito anos. Fotos: Douglas Magno/AFP
Sérgio Abranches , para Headline Ideias30 de jun. de 238 min de leitura

O resultado era esperado. A Justiça Eleitoral condenou Jair Bolsonaro à inelegibilidade por oito anos, a contar da eleição de 2022. O TSE, como disse seu presidente Alexandre de Moraes em seu voto, já havia definido, em 2021, que seria considerado abuso de poder político o uso dos meios de comunicação para disseminar desinformação e mentiras sobre o processo eleitoral, com o objetivo de confundir os eleitores e desacreditar a democracia. O relatório do ministro Benedito Gonçalves, corregedor eleitoral, foi muito circunstanciado e continha provas abundantes do comportamento irregular de Bolsonaro. Era uma espécie de catálogo de irregularidades, abusos e desvios de poder.

Os cinco votos pela condenação mostraram, todos, que a lei caracterizava como abuso de poder usar os recursos do cargo para disseminar desinformação sobre o voto e desvio de finalidade disseminar mentiras sobre o processo eleitoral nos meios de comunicação. A lei não define o crime de abuso de poder com base em um gradiente de gravidade. Há crime quando o ato é praticado, independente de seus efeitos. A lei também não define o crime de abuso de poder pelo seu sucesso. O crime de abuso usando os meios governamentais para confundir, enganar e desinformar o eleitorado independe da vitória eleitoral.

No código penal, o crime de homicídio tem gradação de gravidade. Ela abate a pena, mas não isenta o homicida de punição. Os crimes de abuso e desvio de poder se esgotam nos atos em si. O desvio está configurado pela disseminação de desinformação, fake news, pelos meios de comunicação que deveriam ser usados pelo agente público apenas para fins relativos a suas atribuições constitucionais. Assim julgaram os cinco ministros que condenaram Bolsonaro.

A juíza decidiu

O voto decisivo, que demarcou a maioria pela condenação, foi da ministra Cármen Lúcia. Ela mostrou que nunca houve dúvida razoável sobre a gravidade e a criminalidade dos atos de Bolsonaro. “Houve agravos contundentes contra o Poder Judiciário, a desqualificação do Poder Judiciário, um ataque deliberado com a exposição de fatos que já tinham sido também objetiva, formal e profundamente refutados por este Tribunal Superior Eleitoral”. Também não viu razão para controvérsia sobre as provas. “O que está aqui não é um filme, o que está aqui em apreciação é uma cena, é aquilo que aconteceu e sobre o qual não se controverte nos autos”. A cena do encontro com os embaixadores no Palácio da Alvorada, por convocação de Bolsonaro, que a juíza definiu como "monólogo de autopromoção".

Carmen Lucia recorreu ao conceito de consciência de perverter, uma noção desenvolvida pelo jurista italiano Francesco Carnelutti ao tratar do dolo e da culpa grave no cometimento de ilícitos. Dolo como engano, a "consciência da própria sem-razão por parte de quem sustenta ter razão".

Claramente, como disse a ministra, o caso de Bolsonaro era este, "de saber que não tem razão e ainda assim expor como se tivesse, sabendo que não a tem" Qual a consequência desta conduta? “Isso tudo de desqualificar, essa consciência de perverter, faz com que não apenas o ilícito tenha acontecido, mas coloca em risco a normalidade e a legitimidade do processo eleitoral e, portanto, da própria democracia."

O monólogo de Bolsonaro foi divulgado, ou seja, com o uso indevido dos meios de comunicação estatais e da redes sociais, para solapar a confiabilidade de um processo sem o qual nós não teríamos sequer o Estado de Direito, porque a Constituição não se sustentaria”, disse em seu voto.

Contorcionismos mentais

Os dois ministros divergentes, Raul Araújo e Nunes Marques, votaram como se previa. O histórico de ambos de decisões em linha com os interesses e visões de Bolsonaro permitia afirmar que votariam pelo não reconhecimento dos crimes de abuso e desvio de poder. Para fazer isto, optaram pela via subjetiva, em lugar de ater-se à definição legal dos crimes. Ambos consideraram que os atos de Bolsonaro não foram suficientemente graves para justificar a pena da inelegibilidade. Um raciocínio que beira a dissonância cognitiva.

A gravidade política e abusiva dos atos acompanhou Bolsonaro da posse à fuga para Miami para não passar o cargo ao sucessor legitimamente eleito. Provocou uma ruptura na liturgia da democracia presidencial que foi respeitada de Itamar Franco a Michel Temer, recusando-se a passar o cargo ao presidente eleito.

O ministro Raul Araújo chegou ao contorcionismo mais espetacular, ao considerar que, de fato, a conduta de Bolsonaro foi um caso significativo de disseminação de fake news. Para ele não há diferença entre o que faz um presidente da República e um cidadão comum, que é apenas eleitor.

O ministro Nunes Marques, em um voto cheio de contradições, executou um tríplice carpado ao avaliar a gravidade do crime com base na comparação da audiência da EBC, de 0,30 pontos, com a das líderes privadas, de 11,8, 3,4 e 3,33, respectivamente, segundo ele. Nem a lógica, nem a estatística o socorreram.

Ao deixar de considerar a propagação do "monólogo" de Bolsonaro aos embaixadores pelas redes e o uso abusivo da EBC, Nunes Marques deixou a razão de lado para trilhar pelos artifícios da suposta inocência.

Sem apelação

O voto do ministro Alexandre de Moraes, focado na gravidade dos atos presidenciais, foi uma veemente contradita aos pareceres dos dissidentes. Citou declarações de Bolsonaro e as classificou como mentiras, por três vezes. Moraes disse coisas como "a Justiça eleitoral, como toda Justiça, pode ser cega, mas não é tola, nós não podemos criar o precedente avestruz. Todo mundo sabe o que ocorreu, todo mundo sabe o mecanismo utilizado para obtenção de votos, só que todos escondem a cabeça em baixo da terra". Para Moraes, é de gravidade ímpar um presidente da República, candidato à reeleição se utilizar destes mecanismos de difusão de mentiras para enganar os eleitores. Ele reiterou, ao final, que a secretaria da Corregedoria deveria ser notificada do julgado.

A decisão é autoaplicável. Os embargos cabíveis, no caso, não têm efeito suspensivo, por isto o corregedor Benedito Gonçalves oficiou à secretaria da Corregedoria Eleitoral para registrar a inelegibilidade no histórico eleitoral de Bolsonaro, independente mesmo da publicação da decisão. A partir de hoje, Bolsonaro está, para todos os fins, inelegível.

Justificou-se a cautela dos advogados nas declarações à imprensa. Embargos ao TSE não terão o condão de suspender os efeitos da sentença. Terão que encontrar alguma ínfima razão constitucional para embargar a decisão junto ao Supremo Tribunal Federal. Será ação infrutífera. É improvável que a maioria do STF considere a decisão do TSE inconstitucional.

E agora?

Bolsonaro inelegível por oito anos será progressivamente abandonado à sua própria solidão política. Sobrar-lhe-ão alguns mais crentes do séquito que reuniu, mas estes não têm importância nem política, nem eleitoral. É o fim da carreira política de Bolsonaro. O PL o abandonará por outras lideranças com alguma chance eleitoral. Bolsonaro, como cabo eleitoral, sem estar, ele mesmo, disputando a presidência, pode ser um delírio de outono. Não se deve esquecer que ele responde a mais de uma dezena de outros processos e, mesmo este do TSE, pode conter elementos de prova que levem a um indiciamento com base no código penal.

O ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro verifica seu telefone antes de falar com jornalistas em Belo Horizonte, Minas Gerais, após o Tribunal Superior Eleitoral decidir sobre sua inelegibilidade por oito anos por causa de suas reivindicações infundadas contra o sistema de votação. Foto: Douglas Magno/AFP
O ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro verifica seu telefone antes de falar com jornalistas em Belo Horizonte, Minas Gerais, após o Tribunal Superior Eleitoral decidir sobre sua inelegibilidade.

Bolsonaro não tem herdeiros, se não no plano civil, do direito de família. Na política, é uma liderança infértil, isolada numa posição extremada, radical demais para ser seguida com sucesso. Sua eleição foi incidental. Algo como ela dificilmente se repetirá nas próximas eleições presidenciais. Os episódios de oito de janeiro, que horrorizaram o Brasil, isolaram Bolsonaro no cantão radical e marginal, em todos os sentidos, da política.

As eleições de 2026 serão definidas por dois fatores principais. Em primeiro lugar, pelo desempenho do governo Lula, tanto no plano socioeconômico, quanto no plano político-institucional. Quanto melhor, mais forte o candidato governista. Em segundo, pela decisão de concorrer ou não ao quarto mandato. Se decidir concorrer, impedirá a renovação de lideranças no PT e na esquerda. Certamente disputará com alguma candidatura de centro-direita, que ocupará o lugar do PSDB no eixo bipartidário de disputa eleitoral. Lula estará prejudicando o PT e a democracia brasileira.

Uma eleição sem Lula e sem Bolsonaro, seria a mais competitiva da Terceira República, iniciada em 1988. Daria início à renovação das lideranças políticas, que oxigenariam a democracia brasileira e, talvez, pudessem reduzir o clientelismo e dar mais consistência programática aos partidos mais competitivos.

* Sérgio Abranches é sociólogo, cientista político e escritor. É autor de “Presidencialismo de coalizão”. 

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