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Argentina Incerta

A Argentina mergulhou na mais profunda incerteza com os resultados das primárias. Eles atropelaram as pesquisas eleitorais e mostraram um país dividido em três partes quase do mesmo tamanho. A surpresa foi o primeiro lugar de Javier Milei. A governabilidade na Argentina, já precária, está por um fio

Sérgio Abranches, para Headline Ideias
#INTERNACIONAL16 de ago. de 2310 min de leitura
O candidato presidencial argentino de extrema direita, Javier Milei comemora com fãs, em Buenos Aires, em 13 de agosto de 2023. Foto: Alejandro Pagni/AFP
Sérgio Abranches, para Headline Ideias16 de ago. de 2310 min de leitura

A vitória de Javier Milei, na Argentina, não pode ser descartada. As pesquisas eleitorais não conseguiram dimensionar sua força nas primárias, e não deveriam subestimá-la nas eleições de 22 de outubro. Mas o que seria a vitória de um lobo solitário, sem base parlamentar, sem programa, com discurso radical e cuja votação é explicada pela raiva do eleitorado? É esse enigma que se abate agora sobre a Argentina. Ela tem dois meses para resolvê-lo ou ser tragada por ele, porque Milei é certamente a contratação do aprofundamento da longa crise argentina.

As PASO, Primárias Abertas, Simultâneas e Obrigatórias, estabelecidas em 2009, servem para definir uma linha de corte para os candidatos que disputarão o primeiro turno das eleições de 22 de outubro. Só poderão se inscrever candidatos que tenham obtido pelo menos 1,5% dos votos no distrito correspondente ao cargo a que se candidatam. No caso da presidência, 1,5% do voto nacional. Não servem de base para prognósticos eleitorais, mas dão algumas indicações do que se pode esperar.

As PASO, além de atropelarem as previsões das pesquisas eleitorais, mostraram um país dividido em três partes muito diferentes, o peronismo, a centro-direita e a extrema-direita. A surpresa maior para os pesquisadores e analistas foi a votação de Javier Milei, um ultradireitista com discurso raivoso, demagógico e antipolítica. Milei ficou em primeiro lugar com 30% dos votos. Resultado esperado foi a derrota do oficialismo, o candidato do partido Justicialista, de Alberto Fernández e Cristina Kirchner, Sergio Massa, ficou em terceiro.

Parece certo que o primeiro turno das eleições será um confronto entre o ultradireitista Javier Milei, a direita de Patrícia Bullrich, ex-ministra da Economia de Maurício Macri, que obteve 28% dos votos, e o candidato do oficialismo, Sérgio Massa, atual ministro da Economia, que ficou em terceiro, com 27% dos votos.

A Argentina é um país em decadência econômico-social. Há décadas enfrenta graves surtos inflacionários e de estagnação econômica. A classe média vem murchando e há muito alimenta um contingente de novos pobres. A elite econômica também definha. Este processo começou nos anos 1990 e pode-se dizer que o país vive em estado de crise há pelo menos três décadas. O justicialismo teve o pior resultado de sua história nas PASO. A coalizão Juntos por el Cambio, de Patricia Bullrich, é nucleada pelo PRO, Proposta Republicana, partido criado por Mauricio Macri que, com este resultado, dá sinais de razoável consolidação. Está nesta coalizão também a decadente Unión Cívica Radical, varrida da política argentina pelo fracasso econômico do governo do último presidente que conseguiu eleger, Fernando de la Rúa, que governou a Argentina entre 1999 e 2001. Milei corre solitário, fiando-se em sua capacidade de comunicação e popularidade, derivada de sua carreira como apresentador de televisão.

Direita viável

Para um país do qual se diz não haver direita, limitada por insuperável debilidade histórica, primárias que conferem 58% dos votos à direita tradicional e à extrema-direita parecem um ponto fora da curva. Mas podem ser, também, sinal do fracasso do projeto histórico do peronismo, a força de esquerda/centro-esquerda dominante da política argentina desde a redemocratização. A direita pode ter sido fraca partidariamente, mas quem viveu sangrenta ditadura militar com apoio de setores civis de direita, não pode negá-la como força social viável. Se é ponto fora da curva ou um realinhamento político-partidário em curso, só o tempo dirá.

A crise econômica praticamente varreu do mapa político argentino o tradicional partido da direita, a Unión Cívica Radical, que tinha sólidas bases na classe média urbana. O fracasso da política econômica do último governo da UCR, de Fernando de La Rúa, que terminou em hiperinflação, produziu a fuga de lideranças para outras legendas, algumas efêmeras, que não resistiram a mais de um ciclo eleitoral. Nenhuma delas deitou raízes na sociedade argentina. O empobrecimento da classe média, que vem de décadas de crises econômico-sociais, reduziu drasticamente as bases da Unión Cívica Radical. Esta classe média empobrecida foi uma das principais fontes de voto para Milei.

O direitista Mauricio Macri cresceu no vácuo deixado pela UCR e se elegeu presidente. Perdeu a reeleição por causa da crise econômica. Seu partido PRO mostra certa resistência ao colocar Patricia Bullrich em segundo lugar, a apenas dois pontos de Milei. Mas o partido entrou dividido. A candidata republicana, individualmente, obteve a terceira votação, 17%, e Horacio Rodriguez Larreta, ficou com 11,3%, resultando nos 28,3% que a qualificaram para o primeiro turno de outubro. Milei obteve 30% correndo isoladamente e Sergio Massa ficou em segundo, individualmente, com 21,4% dos votos, somando 27,% com os 5,9% dados a Juan Grabois, resultando em 27,3%.

Patricia Bullrich reconheceu que a divisão interna enfraqueceu o partido. Sem a divisão, segundo ela, ele poderia ter chegado em primeiro nas PASO. A ver se nas eleições de outubro o partido entra unido e consegue aparecer como primeira força.

Milei navega a onda de descontentamento com a decadência do país e o cansaço com mais de uma década de fracassos do peronismo. Sucessivos governos justicialistas não conseguiram retirar o país do marasmo socioeconômico. Não por acaso, o peronismo sofreu dura e previsível derrota. O quadro econômico lhe é muito adverso. Se não houver uma reversão no quadro econômico, é bem provável que o segundo turno se dê entre a extrema-direita ultraliberal de Milei e a direita liberal-conservadora de Bullrich. A incerteza é imensa. Com a desvalorização decretada por Massa, logo após o resultado das primárias, os analistas temem uma aceleração inflacionária que levaria o índice mensal aos dois dígitos.

A ameaça ultradireitista

As primárias não servem de base para prognósticos sobre o primeiro turno das eleições presidenciais de outubro. Mas dão uma direção de tendência. Macri, buscando a reeleição em 2019, perdeu as PASO por 14 pontos percentuais. Nas eleições, foi derrotado por uma diferença de 7 pontos. A capacidade de recuperação do incumbente está alimentando as esperanças dos setores do mercado e dos liberais de um segundo turno entre Bullrich e Massa. Mas não há indicação segura sobre a probabilidade deste resultado, a não ser a resiliência histórica do peronismo. É possível que a piora do quadro econômico nesses trinta e poucos dias liquide as chances de Massa. As pesquisas não estão conseguindo captar as mudanças nas preferências do eleitorado. O cenário de um segundo turno entre Milei e Bullrich não pode ser descartado. Nem mesmo um confronto entre o ultradireitista e o candidato oficial, Massa, embora seja, ao que tudo indica, a hipótese menos provável.

As pesquisas eleitorais não conseguiram dimensionar o crescimento do apoio a Milei, principalmente entre jovens desalentados da classe média e da corte de pobres dela oriunda. Eles se juntaram a setores da elite mais conservadores que também se sentem ameaçados e rejeitam violentamente os políticos, especialmente os peronistas. O discurso demagógico de Milei é antipolítico, antissistema e emocional. Explora o ressentimento e a raiva produzidos pelas perdas sequenciais e pelo desencanto. Uma parte considerável das classes médias e altas da Argentina, se não a totalidade, não consegue ver futuro para o seu país sem mudanças radicais. As bases da UCR de classe média, agora empobrecidas ou temendo o empobrecimento, foram capturadas por Milei.

A vitória de Milei nas PASO foi robusta. Venceu em 16 das 24 províncias argentinas. Os candidatos de sua coalizão foram muito mal nas votações provinciais, inclusive nas províncias em que ele foi mais votado, chegando, em algumas delas, a 40% dos votos. Se vencer, hipótese que não dá para descartar, será um presidente ultrarradical em minoria parlamentar. Teria que obter o apoio da centro-direita e da direita moderada, o que será muito difícil. Menos provável ainda que modere seu discurso e pare de ameaçar eliminar os políticos e a política.

A ameaça ultradireitista

Javier Milei personifica o perigo de recaída autoritária na Argentina, desta vez, segundo o novo figurino da ultradireita, usando o processo eleitoral para chegar ao poder e, em seguida, fazer o trânsito para a autocracia. Suas promessas são explosivas. Na economia, ele pretende dolarizar e fechar o banco central. Na política, ele diz que fará um governo plebiscitário para compensar a posição minoritária no Congresso. 

A dolarização evoca boa memória entre os argentinos mais velhos que sentiram o efeito-riqueza momentâneo que a lei de conversibilidade gerou no início de sua vigência. Ela foi implantada em 1991, por orientação do economista Domingo Cavallo, então ministro da Economia no governo peronista de Carlos Menem. A conversibilidade, que implica na dolarização, perdurou até 2002, e terminou muito mal para os argentinos e para a Unión Cívica Radical, embora tenha sido uma criação de um governo peronista. Durante a vigência da lei, a Argentina passou por várias crises econômicas, aumentaram o desemprego, o subemprego, a pobreza e a desigualdade.

Mulheres passam por uma imagem de notas de cem dólares em Buenos Aires, em 14 de agosto de 2023, um dia após as eleições primárias na Argentina. Foto: Luis Robayo/AFP
Mulheres passam por uma imagem de notas de cem dólares em Buenos Aires, em 14 de agosto de 2023, um dia após as eleições primárias na Argentina. Foto: Luis Robayo/AFP

Mas, a ideia da dolarização também interessa aos jovens porque vêem nela a possibilidade de se defender da inflação e, como são digitais e globalizados, acesso ao mercado internacional. A economia argentina nunca se desdolarizou inteiramente. A fuga dos argentinos para o dólar, como uma forma de proteção contra a inflação, é, contudo, muito diferente de uma política oficial de equiparação do peso ao dólar ou de substituição da moeda local pela moeda americana. Esta teria fortes limitações fiscais. Milei não liga para as restrições fiscais, porque é ultraliberal, libertário de ultradireita, e pretende praticamente eliminar o papel do estado na economia. Os efeitos contracionistas e quase eliminação da rede de proteção social podem levar a uma crise social aguda e a um levante popular. A dolarização é um desastre anunciado.

Um governo plebiscitário seria o caminho mais rápido para o autoritarismo. Nas consultas populares Milei exploraria novamente os sentimentos negativos que dominam a sociedade. Ele pode mergulhar a Argentina na mais profunda crise política e social. Haveria risco concreto de uma comoção social. Milei, com suas ideias fixas, quase certamente frustraria as expectativas de seus eleitores. Suas chances de sucesso no governo seriam minúsculas.

O próprio projeto plebiscitário para promover mudanças radicais e praticamente governar por decreto, não tem bases constitucionais. A constituição argentina é clara. As consultas populares não obrigam o Congresso a aprovar as medidas, nem têm o condão de produzir decretos vinculantes. São apenas uma forma de pressão. Para que o plebiscito seja compulsório ele precisa da aprovação do Congresso. A lei convocatória da consulta popular é iniciativa da Câmara dos Deputados, não do presidente da República, e deve ser examinada em sessão especial e aprovada pela maioria absoluta dos parlamentares. Milei não terá votos parlamentares suficientes para isso. Ou já começa com um golpe de mão, ou tentará um golpe institucional, como fizeram Donald Trump e Jair Bolsonaro. Eleitores frustrados com o presidente de sua escolha e desencantados com as forças políticas tradicionais podem ser o estopim de uma comoção social.

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