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O dia da fundação do Brasil

Neste 7 de setembro de 2023, ainda não viveremos um dia de normalidade, nem de celebração da plenitude democrática. Não tiramos ainda todas as lições dos 7 de setembro passados. Um espetáculo que entre 2019 e 2022 oscilou do infame ao pornográfico

Sérgio Abranches , para o Headline Ideias
#POLÍTICA6 de set. de 236 min de leitura
Iluminação no Congresso Nacional e Museu Nacional, alusiva ao 7 de setembro deste ano. Foto: Audiovisual da Presidência da República
Sérgio Abranches , para o Headline Ideias6 de set. de 236 min de leitura

Há muitas versões do 7 de setembro. Há uma versão oficial que é heróica e militarizada. Ela nem se pergunta onde estava o povo naquele dia. Virou a acepção dominante. Não é a sociedade que festeja a independência. É um desfile militar. Há uma versão jocosa e danosa, que dá relevo ao acessório e nada explica. Há uma versão que se constrói com o mergulho sério na história. Ela ganhou muitas páginas na comemoração ao bicentenário, cuja preparação gerou grande volume de pesquisas, debates e publicações. Por ela, sabe-se que o povo esteve ausente, nem sequer foi espectador. Mas entendeu que aquele momento dava início a um processo de constituição nacional do qual não queriam que participasse. Com base nessa compreensão, a sociedade se agitou antes mesmo do 7 de setembro e ao longo de todo o Reinado, reivindicando a entrada na definição institucionalizada do povo de todas as gentes que habitavam o país recém-fundado, o povo social.

No dia 7 de setembro de 2022, o Brasil comemorava o bicentenário da independência. O tradicional desfile militar da versão dominante, foi transformado por Bolsonaro em ato de campanha pela reeleição e de intimidação. Era parte do plano golpista que Bolsonaro alimentou desde antes de sua posse. Em 2021, ele já havia transformado o 7 de setembro, na avenida Paulista, em um palanque para ameaçar o Supremo Tribunal Federal, ofender ministros e convocar seus seguidores fanatizados e os militares para um golpe. No bicentenário, no Rio de Janeiro, ele desviou o desfile militar para a praia de Copacabana, local de manifestações de seu séquito. Em Brasília, fez ruralistas desfilarem com seus tratores misturados aos tanques e motoqueiros de suas “motociatas” também fazerem parte do desfile. Os comandantes militares não se sentiram incomodados. O 7/9 foi um aviso do que ocorreria no dia da infâmia, o 8 de janeiro de 2023.

O Brasil democrático fez diferente no bicentenário. Ocupou as universidades e os institutos de pesquisa, dedicando-se a examinar criticamente a Independência. Debruçou-se sobre nosso momento fundador em busca de caminhos para constituir o Brasil definitivamente como democracia em uma república de iguais. Ao longo do ano foram programados numerosos seminários, as editoras prepararam muitas publicações. Voltamos a pensar a Independência para mostrar porque somos o que somos e o quê precisamos fazer para retificar o percurso desses 200 anos. O 7 de setembro de 1822 não foi uma revolução, mas foi o marco zero de nossa história como nação. Ali nasceu formalmente o Brasil, não mais colônia, porém sobrecarregado de problemas. Foi o primeiro momento constituinte do Brasil. Joaquim da Silva Rabelo, o Frei Caneca, o definiu bem, ao escrever “estamos sim independentes, mas não constituídos”.

As duas comemorações-comícios da Independência, em 2021 e 2022, serviram para nos lembrar que ainda temos muito a fazer para nos constituirmos em uma república de iguais e democrática. A politização dos militares, o abuso dos poderes da Presidência, a falta de decoro, o servilismo desfilaram aos olhos de um país ainda traumatizado pela pandemia agravada pelo desgoverno.

O Brasil nasceu sem a participação do povo. Ainda não conseguimos demolir as fundações sobre as quais nossa sociedade foi erguida. O racismo, fundado pela escravização de negros sequestrados da África, e o machismo, nascido na estrutura senhorial e patriarcal da casa-grande. Esses dois pilares que atravessaram os dois séculos, enrijecem nossa desigualdade e impedem que avancemos rumo à democracia plenamente inclusiva, na qual o povo institucional seja igual ao povo social. Quando se atinge essa igualdade, tem-se um só povo, o povo cívico.

A partir de nosso momento fundador, uma série de movimentos revolucionários, levantes populares, conjuras buscou redefinir o povo institucional — aquele que é portador de direitos, vota, participa da vida política e social com autonomia e é protegido pela Constituição e pelas leis — para alcançar a todas as forças sociais dele excluídas. A independência abriu a possibilidade da revolta. Podemos e devemos analisar criticamente aquele momento histórico, como o fizemos no bicentenário. Devemos lembra-lo aniversariamente, sem transforma-lo no que não foi. Foi um ato da elite, comemorado com um desfile militar. O povo continua convidado apenas a assistir o espetáculo das elites.

Neste 7 de setembro de 2023, ainda não viveremos um dia de normalidade, nem de celebração da plenitude democrática. Não tiramos ainda todas as lições dos 7 de setembro passados. O racismo estrutural se agravou nos anos sombrios que se seguiram às eleições de 2018. O supremacismo masculino também se fortaleceu e se manifestou no aumento do feminicídio e outros atos de violência contra a mulher. Um espetáculo que, entre 2019 e 2022 oscilou do infame ao pornográfico. No palanque de 7 de setembro, a mulher submissa, sorria quando seu marido dizia que era “imbrochável”. Nem se podia dizer que era um sorriso irônico. Nossa democracia continua debilitada pelos ataques sofridos ao longo desses quatro anos. Ainda não se estabeleceu a extensão da politização das Forças Armadas, nem se puniu os militares que participaram das articulações golpistas.

A busca pela democracia sempre foi dificultosa para nós. Mas avançamos. As sombras da fundação histórica de nossa Independência ainda nos lembram de que ainda há muito a caminhar. A constituição de 1988 tem a mais ampla definição de povo de nosso acervo constitucional. Uma boa parte da inclusão nela assegurada, porém, ainda é apenas de direito, não de fato. O 7 de setembro deve servir para nos lembrar do quanto avançamos e do quanto ainda falta avançar. Não para chegarmos ao ponto em que a democracia alcança a plenitude. Este ponto não existe. A democracia republicana é um alvo móvel. Não existe um estado final de democracia. A sociedade é dinâmica, novas forças surgem do processo de mudança, novas necessidades são criadas e sempre será necessário reavaliar as instituições para que incluam os emergentes.

O 7 de setembro de 2023 não será normal. Por certo, não será palanque para tiranetes. Mas ainda estará cercado de ameaças. O aparato de segurança refletirá a existência ainda de riscos que só desaparecerão quando todos os envolvidos nos atos golpistas forem punidos. Vimos que não é difícil politizar os militares. Eles ainda celebram a ditadura militar, sem reconhecer os abusos dos direitos humanos, a violência política, a tortura, as mortes, e nem mesmo os fracassos sociais e econômicos dos governos daquele período. As corporações militares ainda não foram despolitizadas.

Às vezes comemoramos um evento por suas virtudes. Outras vezes, celebramos uma data como o momento de lembrar do que ainda temos a fazer para retificar nossa trajetória. O 7 de setembro deve ser lembrado e celebrado porque marca a fundação do Brasil como país e para refletir sobre nossas origens problemáticas. A celebração crítica da Independência nos ajudará a encontrar formas mais rápidas e efetivas de eliminar de nosso presente e nosso futuro o que recebemos como fardo. A casa-grande esteve presente naqueles tratores que desfilaram em Brasília como tanques. Ela persiste entre nós como fardo, dor e vergonha. Espero que haja um 7 de setembro no qual o Brasil comemore a superação definitiva dos legados da casa-grande.

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