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Análise – Governo Lula entre duas esquerdas

A diferença entre Lula e Haddad é real. O presidente é da velha guarda da esquerda. Haddad é da nova esquerda. Não significa que Lula desacreditará seu ministro da Fazenda

Sérgio Abranches, para Headline Ideias
#POLÍTICA31 de out. de 236 min de leitura
O então presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, anuncia em coletiva de imprensa em Brasília os primeiros cinco integrantes do seu governo em dezembro de 2022. Foto: Evaristo Sá/AFP
Sérgio Abranches, para Headline Ideias31 de out. de 236 min de leitura

O governo Lula é dividido. Nenhuma surpresa. Foi eleito por uma frente ampla e tem uma coalizão de governo muito heterogênea e muito frágil. Mas a divisão de que trato aqui é da esquerda no governo, especialmente do PT. A maioria é tradicional, tem pensamento econômico superado, e a minoria é atualizada e sabe ser possível lidar com as restrições da transição global com uma política fiscal responsável e um viés progressista. O presidente Lula e os ministros palacianos são da velha esquerda. Têm visões tradicionais sobre economia e geopolítica. O ministro Fernando Haddad é da nova esquerda e suas visões não coincidem com a tradicional.

Mas a diferença de entendimento sobre economia entre Lula e Haddad não significa que o presidente tenha desautorizado o ministro ao falar da impossibilidade de atingir o déficit primário zero. Lula e toda a velha esquerda vêem o equilíbrio fiscal como uma imposição neoliberal e do mercado financeiro. A política neoliberal existe e busca o equilíbrio fiscal por um programa de austeridade a qualquer custo, que sacrifica o gasto social e aumenta a receita tributária sem preocupação com a justiça fiscal. Para os neoliberais a receita é sempre menos gasto social e mais imposto, ainda que regressivo. Uma política que leva ao aumento da desigualdade e, no limite, da pobreza. Perdeu muito espaço depois da pandemia.

Não é o que Haddad acredita ou propõe. Ele tem uma visão bem mais moderna ou mais avançada de equilíbrio fiscal. Como ele disse em entrevista na última segunda-feira, 30/10, acredita ser possível buscar o equilíbrio fiscal, manter o gasto social e fazer justiça tributária e fiscal. O controle do resultado primário não tem ideologia. Deixou de ser obsessão neoliberal e passou a ser uma necessidade diante das restrições oriundas de transformações estruturais globais, em uma economia globalizada e com centralidade do capital financeiro. O que varia e divide os neoliberais dos progressistas é como chegar ao equilíbrio, aumentando ou diminuindo as desigualdades.

O que Haddad propõe é responsabilidade fiscal e social. Uma política progressista que, do lado do gasto, corta subsídios ao capital, define prioridades de investimento e fixa o viés social na prioridade do gasto fiscal. Do lado da receita, aumenta sim a arrecadação, mas com a tributação dos mais ricos. Foi o que buscou, por exemplo, com a taxação dos fundos exclusivos e dos offshore. Significa taxar os super-ricos, aquele 0,5% da população que concentra mais de 40% da renda do país e que não paga imposto. O equilíbrio fiscal perseguido desta maneira contribui para reduzir as desigualdades, mantém a inflação sob controle e promove justiça social tanto pelo lado da receita, quanto do gasto.

É claro que nem tudo sai assim tão certinho. Como Haddad tentou mostrar na entrevista, há decisões do Congresso e do Judiciário que são regressivas, ou seja, beneficiam os ricos em detrimento do pobres. Outras reduzem receita e aumentam gasto. Decisões que dificultam o equilíbrio fiscal e, às vezes, obrigam o governo a tomar medidas que reforçam as desigualdades. Lula só vê este lado da equação e reage com o fígado. Haddad procura avançar nas medidas redistributivas e mitigar as medidas regressivas. Vários ministros, inclusive do PT, querem abandonar a meta de equilíbrio fiscal para poderem gastar sem restrições. Eles vivem no mundo passado, quando era possível financiar gasto com impressão de moeda e inflação. No mundo presente não é mais assim. 

Lula sempre divergiu pessoalmente do controle do déficit. Atribui a ideia à ganância do mercado financeiro. Mas a contrariedade com o controle do resultado primário não o impediu de apoiar as medidas de controle do déficit primário nos seus dois governos anteriores. Haddad insistiu que continuará buscando o equilíbrio fiscal e que levará as medidas necessárias para tanto ao presidente e às lideranças do Congresso. Também tem discutido a pauta fiscal com o novo presidente do Supremo Tribunal Federal, Luis Roberto Barroso.

Diferença entre Haddad e Lula há e haverá. São dois perfis distintos da esquerda. Se Lula desautorizará Haddad na sua política econômica é o que se verá. Se o fizer, corre o risco de perder o melhor ministro da Fazenda que já teve. A discussão se o resultado primário ficará na meta de 0, na banda superior, 0,25, ou um pouco acima, em 0,5, é irrelevante. Esta sim, é uma preocupação neoliberal. Não faz muita diferença e tem a ver com mudanças inesperadas, ou não previstas que reduziram a arrecadação e o crescimento da economia. Os eventos climáticos extremos estão pressionando o gasto fiscal. Decisões políticas reduzem a capacidade de controle inteligente do gasto público. O importante é que a direção seja no sentido da meta zero e o resultado o mais próximo dela possível nas circunstâncias.

Haddad tem razão em dizer que depende de respaldo político para tudo que precisa fazer em busca do equilíbrio fiscal. Divisões internas entre a esquerda tradicional no Planalto e Haddad enfraquecem a posição da Fazenda e do próprio governo no Congresso. O governo é minoritário e Lula está refém do centrão.

A miniaturização das bancadas, que começou nas eleições de 2014 e aumentou muito em 2018 e 2022, deu ao centrão muito mais poder agora do que ele teve no passado. Partidos parasitários que vivem colados nos dutos pelos quais circulam os recursos públicos passaram a ter poder de veto porque não é mais possível formar maioria sem eles.

O presidente da Camara dos Deputados, Arthur Lira e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, durante coletiva para explicar os trâmites do arcabouço fiscal, em 18 de abril. Foto: Joédson Alves/Agência Brasil

Não é a mesma situação que Lula viveu nos seus dois primeiros mandatos, que tinha a dobradinha PT/MDB como pivô de sua coalizão de governo. Este cenário desapareceu em 2014. E foi nesta mudança que Dilma Rousseff sofreu impeachment, articulado pelo MDB.

A ruptura de 2014, aprofundada pela atitude antidemocrática de Aécio Neves, do PSDB, ao pôr em dúvida a lisura da eleição que perdeu, levou à falência do partido, em 2018. Rompeu-se desta maneira o eixo bipartidário de competição pela presidência da República que estruturava governo e oposição. O PT articulava a oposição, quando o PSDB estava na presidência e o PSDB fazia o mesmo, quando o PT governava.

Com o colapso do PSDB, não há mais quem aglutine a oposição em torno de uma candidatura presidencial competitiva. As bancadas ficam gelatinosas, sem outro propósito se não extrair recursos do governo. Às vezes, Gilberto Kassab, o criador do PSD, dá a impressão de que deseja levar o partido a ocupar o lugar deixado vago pelo PSDB no eixo da disputa presidencial. Mas, para isto, a política do PSD teria que ser muito mais coerente e assertiva.

Lula está lidando com uma situação que não conhece e a articulação política do governo é muito falha. Haddad é o melhor negociador que o governo tem, mas age sem respaldo. Agregue-se o fato de que houve significativa transferência de poderes do Executivo para o Legislativo, desde que Bolsonaro abriu mão do poder decisório e do controle da execução orçamentária para o Centrão. A presidência ficou mais fraca e, mesmo quando tem uma base nominal de apoio de mais de 300 deputados, é de fato minoritária.

É neste terreno minado que Haddad terá que avançar para conseguir o equilíbrio fiscal que deseja.

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