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A verdade contra a mentira sobre o dia da infâmia

Nunca houve uma CPI como a dos atos de 8 de janeiro. Uma CPMI, pedida por golpistas para investigar o golpe. Surreal. A vantagem é que existe volumoso acervo de provas

Sérgio Abranches, para Headline Ideias
#POLÍTICA26 de abr. de 2311 min de leitura
O Presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco, fez a leitura do requerimento que pede a instalação da CPI mista para investigar as invasões ocorridas em 8 de janeiro, no plenário do Senado Federal, em Brasília. Fotos: Lula Marques/Agência Brasil.
Sérgio Abranches, para Headline Ideias26 de abr. de 2311 min de leitura

A CPI mista, cujo requerimento foi lido hoje (26/4) pelo presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco, nasce com sérios problemas de credibilidade e respeitabilidade. O autor é um deputado que está sendo investigado no inquérito sobre os acontecimentos de 8 de janeiro no Supremo Tribunal Federal. É surreal um investigado no inquérito sobre o 8 de janeiro, pedindo para investigar o golpe. E ainda quer ser o relator. Certamente a intenção é desviar o foco das questões principais e usar a mentira para falsificar a história do golpe.

A vantagem é que a extrema direita não tem a maioria em nenhuma das duas Casas. O regimento e a força política do centrão e do governo devem neutralizar essa tentativa dos golpistas de assumir o controle da comissão. A maioria deve indicar o presidente e o relator. Estes postos serão ocupados por parlamentares alinhados ao governo, ou mais neutros, seguindo a liderança de Lira.

O PL e os demais partidos ainda ligados a Bolsonaro desejam assumir o controle da comissão apelando para a tradição que dá a relatoria a quem fez o pedido. Não tem base legal e nem legitimidade. Era só o que faltava, um investigado relatar a investigação. O regimento é inequívoco e dá à maioria a possibilidade legítima de preencher os dois postos chaves de uma comissão parlamentar de inquérito. Os nomes sairão de uma negociação entre os governistas e o centrão.

De qualquer forma, investigações parlamentares são sempre bem-vindas na democracia. O Congresso brasileiro fiscaliza de menos e legisla de mais. Medimos o desempenho do Legislativo pela quantidade de projetos de lei aprovados e não por atos de fiscalização e monitoramento político do Executivo. Como se fosse bom ter muitas novas leis. Grande número de leis aprovadas a cada ano deviam ser uma medida de disfunção institucional. Que país precisa de milhares de novas leis por ano para viver bem e em paz? A maior probabilidade é que a CPMI seja adversa para os golpistas e mostrará o erro de tê-la pedido.

Braços cruzados

Os vídeos mais recentes mostram com clareza que agentes do estado traíram sua missão funcional e cruzaram os braços diante da invasão da sede do Executivo, alguns, inclusive, colaboraram com os golpistas. As imagens são parecidas àquelas que serviram de base ao documentário Four hours at the Capitol da HBO e não é por acaso.

As cenas que mostram o general Gonçalves Dias, então chefe do Gabinete de Segurança Institucional, GSI, no Planalto na hora da invasão podem ser de incompetência ou de conivência. Ele foi nomeado por Lula e ficará claro que traiu a confiança do presidente por omissão ou por ação. Em seu depoimento à Polícia Federal, o general falou em "apagão da inteligência" e que não recebeu relatórios de inteligência apontando para o risco de invasão ou ações radicais.

Apuração do jornalista Octávio Guedes, da GloboNews/G1, indicou que ele recebia informes de inteligência dando conta da mudança de humor e da decisão de invadir prédios públicos. De acordo com Guedes, o general desqualificou os informes dizendo à Polícia Federal que eram um "compilado de mensagens" que não poderia ser "considerado tecnicamente um relatório de inteligência para produção de conhecimento para assessorar a decisão do gestor".

Guedes relata que, na manhã de 8 de janeiro, um informe difundido nos grupos de WhatsApp dava conta de que os golpistas falavam em invasão de prédios públicos. "Por volta das 13 horas do dia 8 de janeiro, um grupo denominado boinas vermelhas, composto por paraquedistas da reserva do Exército, deu a senha para o golpe: 'Acabou o pacífico'" segundo Octavio Guedes. Estes informes já estão com a Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI) do Congresso Nacional e podem ser requisitados pela CPMI.

Qualquer iniciante em análise de risco sabe que indícios de ações iminentes de alto impacto e dano são suficientes para se adotar medidas preventivas. Devem, sim, servir de base para decisões. Ou o general não tinha treinamento adequado na avaliação de riscos, ou não quis usar este treinamento no caso específico. Como ele explicou à Polícia Federal que não prendeu ninguém porque gerenciava a crise, não parece desconhecer as técnicas de análise de risco e gestão de crises. Parece que não soube ou não quis usá-las.

Quem incitou, quem mandou, quem financiou?

A CPI mista já tem muito material para já iniciar seus trabalhos. Se o presidente e o relator trabalharem com seriedade, ela pode começar a todo vapor examinando as evidências existentes. Se quiserem cumprir bem seus papéis institucionais, conduzirão os trabalhos para a identificação de incitadores, mandantes e financiadores.

Eles não aparecem nas imagens. A trama e seu financiamento começaram antes de 8 de janeiro. Alcançam as lives de Bolsonaro e sua reunião com os embaixadores para desacreditar o sistema eleitoral, suas declarações contra o Supremo Tribunal Federal, até os acampamentos de seus apoiadores fanatizados. Estes acampamentos foram mantidos por longo prazo. Foi neles que se urdiu parte do golpe e outras tentativas que terminaram desbaratadas. Não custaram barato. Nem os ônibus que levaram milhares para engrossar a fileira dos invasores dos prédios públicos. Os cabeças do golpe aguardavam o desfecho em confortáveis mansões em Miami, em requintados escritórios na Faria Lima ou de grandes redes comerciais em outras localizações e em ricas fazendas no Centro-Oeste e na Amazônia.

O principal artífice da tentativa de golpe o alimentou com suas pregações antidemocráticas, com as acusações de fraude eleitoral e lançando descrédito sobre as urnas eletrônicas. Ele fugiu do país e de suas obrigações, instalando-se em Miami antes da posse do presidente que o derrotou nas urnas. Seria o principal beneficiário do golpe.

Seu ex-ministro da Justiça terá que explicar os indícios de que participou das tramas que desenharam as possibilidades de golpe, intervenção na Justiça Eleitoral, invasão das sedes dos Poderes da República para justificar intervenção diante da desordem pública. Já como Secretário de Segurança do governo do Distrito Federal, também fugiu de suas obrigações para Miami na véspera da tentativa de golpe. Terá que explicar porque desmobilizou as forças de segurança que deveriam estar encarregadas de manter a manifestação golpista longe da Praça dos Três Poderes e porque deixou o comando da segurança do DF no momento de maior ameaça à ordem pública.

A verdade contra a infâmia

A verdade está do lado dos que foram vitimados pela tentativa de golpe, os três Poderes, Lula e seu governo e todos os democratas do Brasil. O que a extrema-direita golpista quer fazer é transferir a responsabilidade pelo que ocorreu no dia 8 de janeiro para o governo que completava seu oitavo dia. Não. Ele foi a vítima, como o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal. Querem dizer que foi a imprevidência e incompetência do governo que permitiu que tudo aquilo ocorresse.

Alguns mais ousados no uso da mentira estão dizendo que as cenas mostram agentes do governo colaborando com os golpistas. Eles têm a petulância de reescrever o futuro do passado, dizendo que se o governo tivesse reprimido os manifestantes nada teria acontecido. Mentiras tão evidentes não têm como destino os autos da investigação. Vão direto para as redes de golpistas e de sequazes do chefe político.

O aparelho de Estado estava infiltrado por militares e civis alinhados às sandices de Bolsonaro. O governo não podia, em oito dias, desaparelhar a máquina pública e o Estado de agentes ativos ou passivos do golpismo. Faltou muito pouco para que o golpe se consumasse. De acordo com algumas fontes de bastidor, faltou a unanimidade no alto comando do exército. Alguns generais, não a maioria, se opuseram à hipótese de intervirem uma vez constatada a desordem civil e a ameaça aos poderes constituídos.

Acabou sendo uma página suja na história do Brasil, ao lado das muitas páginas legadas por um governo antidemocrático e inepto. Foram os derradeiros crimes de um presidente e um governo que cometeram crimes seriais impunemente até agora.

Praça dos Três Poderes e Capitólio

A CPMI pode se inspirar nos vídeos da investigação do comitê da Câmara dos Deputados sobre a invasão do Capitólio por golpistas insuflados por Trump, no dia 6 de janeiro de 2021. Seu relatório final apontou que Trump violou quatro estatutos criminais, tanto na véspera do ataque, quanto durante o que chamaram de "insurreição", e recomendou ao Departamento de Justiça — equivalente de nossa Procuradoria Geral da República — que processe o ex-presidente por seus atos criminosos.

A similitude das datas das tentativas de golpe não é mera coincidência. Trump e Bolsonaro tiveram atitudes muito semelhantes, ao se verem derrotados nas urnas. Trump esperava que a invasão da sede do Congresso americano, em 6 de janeiro, levasse à impugnação da vitória de Biden. Não comandou a marcha contra o Capitólio. Refugiou-se em área segura da Casa Branca e acompanhou a tentativa de golpe pela televisão.

Bolsonaro esperava que a invasão de 8 de janeiro de 2023 levasse à intervenção militar para restabelecer a ordem e à anulação do resultado das eleições, que redundaria na deposição de Lula. A investigação na Câmara americana em nada interferiu com as atividades regulares do Legislativo. Foram 18 meses de investigação, perto de 1000 depoimentos e um relatório de 156 páginas que aponta Trump como "causa central" dos ataques.

Erro de avaliação

O governo Lula errou em resistir à convocação da CPI logo no início da Legislatura. Devia ter orientado seus parlamentares a propô-la, dado que fora a vítima da tentativa de golpe e garantiria maioria folgada e ainda sob a impressão recente dos eventos. Temeu que votações importantes, como a do arcabouço fiscal, ficassem comprometidas. Erro de avaliação. Perdeu a iniciativa. Poderia ter articulado com os presidentes das duas Casas, igualmente vítimas, a convocação da CPI, desta forma teria o poder de agenda tanto sobre a investigação, quanto sobre a pauta legislativa.

O governo terá a maioria na CPMI, tanto no Senado, quanto na Câmara. No Senado, contará com senadores mais alinhados, com os quais precisará acertar apenas procedimentos e posições, sem necessariamente precisar negociar cada votação com concessões em cargos e verbas. Na Câmara, terá maioria, mas com menor poder de alavancagem. Parte da maioria na Câmara é líquida, composta por deputados do centrão, com os quais terá que negociar cada voto essencial. O governo também dependerá principalmente de Arthur Lira, que controla o maior bloco de partidos em uma Casa na qual a posição do governo é menos sólida.

O deputado federal Chico Alencar (PSOL-RJ) abraça o Presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco, durante a sessão de aprovaçnao da instalação da CPI mista para investigar as invasões ocorridas em 8 de janeiro, no plenário do Senado Federal, em Brasília. Foto: Lula Marques/Agência Brasil
O deputado federal Chico Alencar (PSOL-RJ) abraça o Presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco, durante a sessão de aprovaçnao da instalação da CPI mista para investigar as invasões ocorridas em 8 de janeiro, no plenário do Senado Federal, em Brasília.

O governo terá que negociar com Lira o posto que caberá à Câmara. Pelo regimento, seria a vez da Câmara presidir a comissão e, ao Senado, ocupar a relatoria. Mas, nos bastidores, há uma queda de braço entre Lira, que deseja indicar o relator, e Rodrigo Pacheco, que defende o cumprimento da alternância determinada pelo regimento. Esta disputa atravessa a negociação entre o governo e Lira sobre o controle da CPMI.

É uma Câmara muito diferente daquela com a qual Lula lidou nos seus governos anteriores. O PT e o MDB já não formam o maior bloco de cadeiras, o centrão domina parte significativa da maioria e é muito dividido. O presidente da Câmara tem mais poder e, no caso específico de Arthur Lira, tem ascendência sobre a maioria do centrão e parte do centro tradicional.

O percurso de uma CPI é imprevisível. Toda CPI ou CPMI abriga um paradoxo. Quanto mais atenção da opinião pública, mais espetáculo e maior o risco de perder a profundidade. Quanto menos atenção da opinião pública, menor o interesse da maioria dos membros em levar adiante as investigações e maior o risco de perder a relevância. Tudo indica que esta terá toda a atenção da mídia e da opinião pública.

No caso da CPI da pandemia, por exemplo, houve grande atenção da mídia e da opinião pública, ela foi espetacularizada, mas por força do trabalho de vários parlamentares e do relator, teve relevância. Pena que suas conclusões não tenham sido consideradas pela Procuradoria Geral da República, controlada por Bolsonaro. A dinâmica da CPI mista é que dirá como ela resolverá este paradoxo.

* Sérgio Abranches é sociólogo, cientista político e escritor. É autor de “Presidencialismo de coalizão”. 

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