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A transição energética como negação

Falar em transição energética, sem promover mudanças reais na produção e no uso de energia, é usar o termo para negar a transformação socioeconômica necessária

Sérgio Abranches, para Headline Ideias
#MEIO AMBIENTE9 de ago. de 238 min de leitura
Nesta foto divulgada pela Presidência da Colômbia, o presidente Gustavo Petro (E) e o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silvas acenam enquanto posam para uma foto durante a Cúpula da Amazônia IV Reunião de Presidentes dos Estados Partes do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) em Belém, no Pará, em 8 de agosto de 2023. Foto: Divulgação Presidência da Colômbia/AFP
Sérgio Abranches, para Headline Ideias9 de ago. de 238 min de leitura

O presidente da Colômbia Gustavo Petro fez uma advertência importante na Cúpula da Amazônia, ao criticar a esquerda por usar o termo "transição energética" para mascarar o negacionismo desenvolvimentista que domina a mentalidade das elites da região. É fácil verificar se um país ou um governante tem realmente planos concretos para promover a mudança no padrão energético ou está usando a promessa como um biombo para velhas ideias e práticas. Basta verificar se as políticas públicas que lançam contemplam novos modos de uso de energia ou não.

Até agora, o presidente Lula e seus ministros têm usado o termo "transição energética" como rótulo em uma embalagem vazia. Todas as ações voltadas para a aceleração do crescimento aprovadas por Lula negam a transição energética.

Usam o álibi da “matriz energética limpa” para procrastinar e evitar mudar o padrão de produção e uso de energia para valer. Imaginam que a redução do desmatamento na Amazônia seja contribuição suficiente do país à luta pela mitigação da mudança climática. Não é. É importante e essencial, mas não é contribuição suficiente. E não falo do que os países desenvolvidos demandam. Falo das exigências que a mudança climática nos impõe. Falo de necessidades estruturais, não de pressões políticas. Se chegássemos ao desmatamento-zero, rapidamente o setor de transportes se tornaria fonte das maiores emissões de gases estufa do país, mostrando que não estamos no caminho de uma economia descarbonizada.

Negando os objetivos de mitigação da mudança climática

A insistência em expandir a exploração de petróleo em várias áreas, inclusive no mar da Amazônia, nega e desmente a seriedade da intenção de promover a transição energética do país para buscar a meta de emissões zero de gases estufa. Se Lula utilizar parecer da CGU para atropelar o Ibama e explorar petróleo no mar equatorial, na Amazônia, estará produzindo uma nova Belo Monte, desta vez no setor petrolífero.

Para dizer com autoridade e seriedade que está buscando a transição energética, o governo teria que abandonar a ideia de aumentar as áreas de produção de petróleo, em particular, claro, em terras e águas da Amazônia e orientar a Petrobras a acelerar sua transformação em companhia de energia, reduzindo rapidamente a participação do petróleo e do gás em seu portfólio de produtos. 

A busca é por energias renováveis novas e mais limpas possível. É o caso do hidrogênio verde mas, definitivamente, não é o caso da energia nuclear, uma solução velha, de alto risco e de lixo muito sujo. O Brasil é um dos poucos países em condições de alcançar rapidamente capacidade produtiva em hidrogênio verde, se investir em energias novas, principalmente eólica e solar.

Outra ação que desmente a transição energética é o programa de incentivo à compra de automóveis e outros veículos a combustão. Consideraram suficiente incluir modesta e praticamente ineficaz demanda de maior eficiência energética. Mas o incentivo a veículos com motores a combustão nega a intenção de mudar o padrão de uso de energia. O programa, para estar em sintonia com a verdadeira transição energética, deveria desestimular a compra de veículos a combustão e promover sua substituição por veículos híbridos — etanol/elétricos — e totalmente elétricos. O motor auxiliar ao elétrico, movido a etanol e não gasolina, nos híbridos seria um diferencial competitivo brasileiro.

No tal PAC novo, que ainda não veio à luz, a prioridade em infraestrutura somente valerá como contribuição nova à luta climática se estiver voltada para a transição energética. Para chegarmos lá, o PAC deveria ter metas firmes e fortes para eletrificação das frotas. Trocar, por exemplo, veículos das redes BRT por novos com motores a diesel, mesmo quando estão no padrão Euro 6 mais limpo e eficiente, não tem valor na política de emissões-zero. É mudar do fóssil muito poluente, para o fóssil menos sujo. BRTs elétricos e veículos leves elétricos sobre trilhos, sim, fariam parte de uma verdadeira mudança no uso de energia nos transportes urbanos. Se o novo PAC se apoiar na energia nuclear de uma Angra 3, cara, velha e suja, não passará de um velho PAC com vários desastres ambientais nele embutidos. Se puser a ênfase em viabilizar o hidrogênio verde, estará no caminho da verdadeira transição energética.

Os investimentos em infra-estrutura teriam que contemplar rodovias inteligentes, com conectividade para aumentar a eficiência logística, e totalmente habilitadas para o tráfego de veículos elétricos. Indispensável a instalação de pontos de carregamento de baterias automotivas em todas as rodovias e cidades do país. Incentivos para a mudança de modais, reduzindo fortemente o transporte de carga a longa distância por rodovias e transferindo essas cargas para ferrovias eletrificadas. Por aí, o governo chegaria mesmo a um programa de aceleração do crescimento novo e compatível com uma política climática consequente.

O desenvolvimentismo fóssil

O Brasil continua dominado por uma mentalidade desenvolvimentista velha. E não estou abraçando nenhuma tese neoliberal avessa aos incentivos e às ações estatais para promover o desenvolvimento. Ao contrário, o estado é imprescindível para que possamos mudar nosso padrão de desenvolvimento e transformá-lo em um padrão sustentável, inclusivo e zero-carbono. Só se poderá obter este resultado com recurso estratégico e planejado a incentivos e desincentivos, e à regulação mais efetiva. Em relação, por exemplo, à mudança de modais de transporte de cargas, seria aconselhável regular o tipo de carga que pode trafegar por rodovias federais para induzir sua transferência para o modal ferroviário. Na velha mentalidade desenvolvimentista, celebrou-se a “dieselização” das ferrovias. Pois teremos que “reeletrificá-las” como parte do novo padrão de desenvolvimento.  

Se as políticas públicas, especialmente para setores energia-intensivos, não contiverem sempre uma diretriz de mudança real de uso de energia, com substituição da energia fóssil por energias renováveis limpas, não há uma política real de transição energética. O que há é apenas negacionismo desenvolvimentista embrulhado em promessas vãs.

O mapa da transição está pronto

Relatório de setembro de 2021, baseado no “Diálogo de alto nível sobre energia”, convocado pelo secretário-geral das Nações Unidas, diz que a transição energética deve ter objetivos e metas bem definidos, buscando zerar as emissões. A transição precisa ser acelerada de forma significativa e ampliar seu escopo para atingir o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 7 (ODS7). Ele contém o compromisso de assegurar energia barata, confiável, sustentável e moderna para todos, condena a dependência a combustíveis fósseis e determina a mudança das soluções energéticas o mais rápido possível. O relatório também indica que a mudança nas fontes de energia esteja alinhada com a meta acertada no Acordo de Paris sobre mudança climática. E conclui que a transição energética não pode se limitar a passos incrementais. Ela deve ser um esforço transformador, uma mudança sistêmica. Só estará em sintonia com a verdadeira transição energética o investimento que crie uma infra-estrutura física que ajude a acelera-la.

Como o relatório saiu nos malfadados anos da má gestão Bolsonaro, recomendo sua leitura agora por todos que, no governo, estão falando em transição energética. Ao comparar o que fazem com o que está graficamente disposto no texto publicado sob o patrocínio da Assembleia Geral das Nações Unidas, verão que estão muito distantes da real transição energética.

A mudança é de padrão de desenvolvimento

Estamos falando em mudança de padrão de desenvolvimento. Este, se baseia em um modelo de produção e uso de energia e em modos de distribuição e consumo de mercadorias, bens e serviços. Os padrões de desenvolvimento do século 20 e das três décadas deste século se assentam na energia fóssil. O que os cientistas do clima nos dizem é que estes padrões de desenvolvimento precisam ser integralmente substituídos, adotando-se um novo modelo energético, zero-fóssil, novos sistemas de distribuição, logística e de consumo em sintonia com a emissão-zero de gases estufa. E temos muito pouco tempo, daí o repetido uso do verbo “acelerar”. Não dá mais para sermos incrementais, nem para irmos levando como se estivesse tudo bem. Não está nada bem no clima.

Nesta foto divulgada pela Presidência da Colômbia, o Presidente Gustavo Petro (R) cumprimenta a Ministra dos Povos Indígenas do Brasil Sonia Guajajara durante a Cúpula da Amazônia IV Reunião de Presidentes dos Estados Partes do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) em Belém, no Pará, Brasil , em 8 de agosto de 2023. Foto: Divulgação Presidência da Colômbia/AFP
O presidente da Colômbia, Gustavo Petro, cumprimenta a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, durante a Cúpula da Amazônia, em Belém (PA). Foto: Divulgação Presidência da Colômbia/AFP

Os sinais mais recentes de aceleração — olha ela aí de novo — da mudança climática encurtaram significativamente nosso horizonte temporal. Em vários campos, principalmente no uso da terra (desmatamento) e de energia fóssil, temos que obter resultados significativos até 2025 e estarmos bem avançados na transição energética até 2030. É, como diz o relatório da ONU, uma questão de sobrevivência. 

Que a extrema-direita e a direita atrasada neguem tudo isso é compreensível. Que a esquerda e os setores progressistas democráticos neguem é um disparate. Quem perde mais com a insistência no padrão fóssil são os mais pobres. Programas supostamente de esquerda que contribuam para atrasar esta transição não são progressistas, são regressivos, favorecem os muito ricos e desfavorecem os pobres.

O Brasil tem uma das mais fósseis matrizes energéticas nos setores de transportes, indústria e agroindústria. Só a nossa matriz elétrica é mais limpa do que a de outros países. Está na hora de tirar os biombos de cena, recusar os falsos álibis e começar a falar a sério sobre mudança no padrão de desenvolvimento e na matriz energética.

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