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Análise – A mão visível da morte

A tragédia dos Yanomami revela a face cruel da política deliberada de negação de socorro e conivência com o cerco do garimpo à terra indígena

Sérgio Abranches, para Headline Ideias
#POLÍTICA25 de jan. de 2311 min de leitura
"Bolsonaro sempre quis transformar a região da TIY em território livre para a exploração predatória do ouro". Foto: Daniel Marenco/ Headline
Sérgio Abranches, para Headline Ideias25 de jan. de 2311 min de leitura

As imagens de crianças, mulheres e homens esquálidos, por causa da inanição, da desidratação e doenças não deixam dúvida, foram vítimas da ação e da omissão. A terra Yanomami enfrenta problemas de muito tempo. Sua demarcação surgiu do conflito, com muitas mortes.

Em uma nota da coluna Panorama Político, de Ilimar Franco, em 2008, Fernando Collor, relembrando a homologação da Terra Yanomami (TIY) por ele, em maio de 1992, disse que foi "necessário proteger uma área de floresta e uma etnia, e havia conflitos com garimpeiros e tráfico de drogas no local". Os problemas eram antigos. Começaram com a corrida do ouro dos ano 1980, no ambiente propício criado pela ditadura militar. Foi Sydnei Possuelo, então na Funai, que comandou a retirada dos garimpeiros da terra recém demarcada.

No início do século 21, a TIY já era uma área assolada pelo garimpo e pela violência. Mas tudo piorou com a gestão de Jair Bolsonaro. Desde o início ele deixou claras suas intenções ao transferir a Funai para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, sob Damares Alves, hoje senadora eleita. Em boa hora, o Congresso recusou a transferência. Mas não tirou da indigitada ministra a obrigação de defender os direitos humanos, o que descumpriu com rigor.

Em Medida Provisória, Bolsonaro retirou da Funai a competência para demarcar terras indígenas e a entregou ao Ministério da Agricultura, sob comando da ruralista Tereza Cristina. Enquanto era de sua alçada, a ministra seguiu à risca a vontade do chefe de não demarcar um centímetro de terra indígena. A decisão foi judicializada e a MP suspensa pelo ministro Luiz Roberto Barroso, do STF. O Congresso Nacional, em seguida, impugnou a transferência. Mas, o ministro da Justiça, Anderson Torres, o mesmo que está sendo investigado pela omissão na invasão dos Três Poderes e pela posse da minuta do golpe, nada fez de diferente. Não demarcou terra alguma e manteve a Funai desmobilizada e inativa. Como sempre, no governo Bolsonaro, um mandava e os outros obedeciam.

Bolsonaro sempre quis transformar a região da TIY em território livre para a exploração predatória do ouro. Como lembrou Bernardo Mello Franco em sua coluna, três dias após a homologação por Collor, Bolsonaro perguntava da tribuna da Câmara: “Essa área é a mais rica do país. Por que instituir uma reserva indígena lá?”. Bernardo garimpou a pepita original da visão de Bolsonaro sobre o que fazer com os indígenas. “Competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema em seu país”, Bolsonaro disse, em 1998.

Bolsonaro, além de não respeitar a demarcação, pois não tomou medidas que garantissem a integridade da TIY, pretendia legalizar o crime do garimpo na Amazônia: "Intenção minha regulamentar o garimpo, legalizar o garimpo, é intenção minha, inclusive para índio. Tem que ter o direito de explorar o garimpo na tua propriedade. A terra indígena é como se fosse propriedade dele", disse após inaugurar uma ponte de madeira construída pelo exército que facilitaria o acesso à terra dos Yanomami. E arrematou dizendo que “em Roraima tem R$ 3 trilhões embaixo da terra. E o índio tem o direito de explorar isso de forma racional, obviamente. O índio não pode continuar sendo pobre em cima de terra rica.” Ele nunca mudou de posição, essa é uma de suas patologias, desde aquele discurso de 1992.

Bolsonaro é ideia-fixa, não aprende com a experiência, nem acredita em evidências que desmintam o que pensa. Pensa e executa, ou deixa executarem o que pensa.

Evidências de genocídio

O ministro da Justiça, Flávio Dino, disse que há evidências materiais de genocídio no que ocorreu com os Yanomami. A mão que levou à morte os indígenas, por inanição, doença e intoxicação por mercúrio é visível, nem se preocupou em se camuflar. Os executores diretos foram os garimpeiros. Mas aqueles que ao descumprir suas funções de Estado deixaram que faltassem aos indígenas os meios de subsistência e sonegaram socorro e medicação também cometeram esse crime. Aliás, estão na ponta superior da arquitetura do extermínio.

Por que falar em genocídio? Não será exagero? O genocídio não é uma figura de retórica, nem um xingamento. É um crime na legislação brasileira e no direito internacional. O genocídio é internacionalmente definido por atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Esses atos se enquadram em cinco categorias, das quais três nos interessam para este caso: matar membros do grupo; causar lesões corporais ou mentais graves a membros do grupo; infligir deliberadamente ao grupo condições de vida calculadas para provocar sua destruição física total ou parcial.

Ninguém pode ter dúvida razoável sobre o fato de que os garimpeiros mataram numerosos membros do grupo, inclusive jovens que foram estupradas e crianças. Mais, pelo menos três das jovens estupradas cometeram suicídio. E mais, houve ocultação de cadáveres.

Além disso, o cerco dos garimpeiros impediu os indígenas de obter socorro médico e alimentos. Doenças não tratadas ou mal curadas, omissão de socorro médico, levaram indígenas à morte e provocaram lesões graves em muitos deles. Não foi agora que os indígenas enfrentaram a desnutrição e a doença. A situação calamitosa dos Yanomami já era conhecida. Sofriam com recorrentes casos de crianças desnutridas e conflitos com garimpeiros ilegais. Na pandemia, o acesso difícil não impediu a chegada do coronavírus e muitos deles morreram por falta de socorro. O avanço da covid entre os Yanomami resultou da omissão do Estado.

Relatório publicado em 2020 pelo Instituto Socioambiental (ISA), elaborado por lideranças Yanomami e Ye'kwana e uma rede de pesquisadores detalhou o avanço da pandemia no território indígena e indicou que um em cada três Yanomami já podia ter sido contaminado pelo novo coronavírus. Houve resposta governamental ao avanço da pandemia na Terra Yanomami, em episódio detalhado no relatório. A mão visível enviou "auxílio" médico à terra Yanomami, passados três meses após a primeira morte de um Yanomami por covid-19, um jovem de 15 anos. Levou em "uma missão comandada pelo Exército 16 mil comprimidos de cloroquina para os pólos base e mais 33 mil comprimidos para o Dsei-Y."

Dsei-Y é o Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami. As autoridades argumentaram que o lote serviria para o combate da malária, não da covid-19, como informara a Sesai. O fato é que malária havia e covid também. Socorro, não. Este distrito sanitário foi o que mais gastou verbas destinadas à saúde de todos os distritos do país. Muito gasto registrado, falta de remédios e população desamparada, todos sabem como se chama.

Por isso a Polícia Federal lançou a operação Yoasi para investigar fraude na compra de remédios que seriam destinados aos indígenas e desvio de recursos públicos. As investigações mostraram que o esquema no Dsei-Y deixou mais de dez mil crianças desassistidas, resultando no aumento de infecções e manifestações de formas graves da doença.

Cabeça rica e de aparência legal

O governo, sob a presidência de Bolsonaro, tentou ocultar a gravidade da crise na TIY e a direção da Funai de Bolsonaro desconsiderou plano de técnicos do Ibama para retirar os garimpeiros da Terra Indígena Yanomami, em um prazo de dois anos. Aliás, desnecessário. Bastariam alguns dias de ação enérgica da Polícia Federal, da Força Nacional, do Exército e da Aeronáutica. A Aeronáutica, desde que o SIPAM/SIVAM a aparelhou com aeronaves com radares e sensores passou a ter controle sobre o tráfego aéreo da Amazônia. Por que permitiu que os céus amazônicos, além de rios voadores, fossem rota livre de aviões clandestinos, de garimpeiros e traficantes armas e drogas? O procurador Alisson Marugal disse a Piero Locatelli e Guilherme Henrique da Repórter Brasil, em matéria sobre o mercado de aeronaves que apoia o garimpo ilegal, para a série Ouro do Sangue Yanomami, que, "se estrangularmos a logística, o garimpo sofre um duro golpe. Mas a fiscalização, responsabilidade da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) e da FAB (Força Aérea Brasileira), é muito frágil”.

Quando se fala de garimpeiros, é preciso considerar que eles são elos ilegais e clandestinos de uma corrente criminosa que tem uma cabeça rica e de aparência legal. Uma parte do ouro que abastece joalheiras e comerciantes de ouro vem tinto de sangue e iodo dos garimpos ilegais, mostrou a matéria das repórteres Maria Fernanda Ribeiro e Clara Brito, da Amazônia Real em parceria com a Repórter Brasil. Investigações da Polícia Federal e do Ministério Público Federal apontam que a empresa italiana Chimet e a brasileira FD’Gold extraíram e exportaram ilegalmente ouro de terras indígenas na Amazônia Legal, que pode ter chegado até as Big Techs.

Há pouca dúvida de que o governo Bolsonaro representou o mal absoluto, para os Yanomami. Uso a expressão do mesmo modo que as filósofas Hannah Arendt e Susan Neiman usaram em suas reflexões sobre o nazismo. O médico Paulo Cesar Basta, doutor em Saúde Pública, "um dos mais experientes no tema da saúde Yanomami no país, e com larga experiência de campo junto às equipes multidisciplinares de saúde indígena na Terra Indígena Yanomami", disse por mensagem à Agência Pública que "o estado nutricional das crianças Yanomami é realmente muito ruim, só comparável aos dados de crianças da África Subsaariana”, conta o jornalista investigativo Rubens Valente, em matéria primorosa para a Agência Pública.

Quem já viu as fotos das crianças famélicas da região do Sahel, na Etiópia, sabe do que o médico está falando. A primeira vez que li um estudo do economista Amartya Sen, professor de economia e filosofia em Harvard, foi em 1983, quando pesquisava sobre proeza e escrevi o pequeno livro Os Despossuídos: crescimento e pobreza no país do milagre, a pedido do editor Jorge Zahar. Amartya Sen, no livro Poverty and Famines: An essa on entitlement and deprivation, demonstrava de forma cabal que a morte em massa de camponeses pobres no Sahel não provinha da escassez de alimentos, nem foi preço. Resultava da má distribuição de grãos e rendas, que deixavam os camponeses pobres da região destituídos de meios para sobreviver. Era uma mortalidade socialmente determinada. Em geral, essas ondas de inanição eram atribuídas à seca.

Os Yanomami também não morrem por causa de evento naturais extremos. No caso deles, nem é mesmo um caso de má distribuição de alimentos e rendas. Apenas depois de estarem destituídos dos seus meios de subsistência de acordo com sua cultural, eles são vitimados pela má distribuição. A morte dos Yanomamis vem pela mão visível do Estado. Tanto por ação, como o incentivo dado a Bolsonaro, repetidas vezes, aos garimpeiros, quanto pela omissão.

Basta um exemplo: em 26 de outubro de 2021, Bolsonaro visitou Roraima e se encontrou com garimpeiros da comunidade Flechal, município de Uiramutã, fronteira com a Venezuela, na área da Terra Indígena Serra Raposa do Sol, também dos Yanomami. Em relatório do Conselho Indígena de Roraima, segundo reportagem de Fabiano Maisonnave e Rosiene Carvalho para a Folha de São Paulo, vê-se o registro escabroso da situação dos indígenas assediados pelo garimpo. "De maneira mais ampla, lideranças relatam que o garimpo ilegal na região das Serras tem agravado uso abusivo de álcool, cujo consumo é proibido em terras indígenas, e de drogas ilícitas, como a maconha", diz o relatório. Mais adiante, mostra que há "uma desestruturação social das comunidades porque jovens estão deixando de trabalhar nas roças, com a comunidade, já não colaboram mais com ninguém para trabalhar apenas garimpando; tornaram-se 'escravos daquele ritmo de vida'". É o que Bolsonaro interpreta como desejo dos indígenas de garimpar como "se fosse propriedade dele", para deixar de ser "pobre em cima de terra rica".

A poluição da terra e dos rios, a destruição do terreno e da vegetação pelos garimpeiros impunes e que tinham as costas quentes com o apoio explícito de Bolsonaro, que lhes prometia a legalidade no paraíso devastado, deixa os indígenas sem condições de sobrevivência seguindo seus hábitos culturais. A pesca está envenenada, a terra, improdutiva, a água imprópria para o consumo.

É impossível não investigar o genocídio dos Yanomami, diante de tanta evidência de que houve numerosos atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, este grupo. De que mataram membros do povo Yanomami, que causaram lesões corporais ou mentais graves aos Yanomami e que infligiram deliberadamente ao grupo condições de vida calculadas para provocar sua destruição física total ou parcial.

* Sérgio Abranches é sociólogo, cientista político e escritor. É autor de “Presidencialismo de coalizão”.

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