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A lei na selva

A tragédia dos Yanomami é a face visível da catástrofe humanitária decorrente do genocídio indígena. Todos os povos indígenas estão sob ameaça e não só na Amazônia

Sérgio Abranches, para Headline Ideias
#POLÍTICA1 de fev. de 238 min de leitura
Criança Yanomami é levada para tratamento. Foto: Michael Dantas/AFP
Sérgio Abranches, para Headline Ideias1 de fev. de 238 min de leitura

O Brasil é surreal. Um país no qual a Suprema Corte precisa mandar investigar bandidos, obedecer a lei e determinar ao Executivo que implemente políticas públicas para remediar uma catástrofe humanitária, cuja principal culpa é do próprio Executivo, no governo anterior.

Um país no qual o presidente da República faz um decreto mandando forças armadas, polícia e agências públicas cumprirem suas responsabilidades constitucionais e legais. Pois é, mas teve que ser assim, porque o governo Bolsonaro disseminou desordem, ilegalidade, desmando, desregramento e inação em vários campos de obrigação do Executivo federal e do Estado. Bolsonaro e seus ministros descumpriram ordens judiciais. Cometeram crimes de responsabilidade e crimes comuns.

Vamos lembrar os momentos do desgoverno que nos lesaram gravemente: pandemia, invasões de terra, queimadas e desmatamento recorde em todos os biomas, especialmente na Amazônia. Ações e inações que puseram em risco de extermínio povos indígenas como os Yanomami, Waimiri-Atroari, Munduruku, Guarani-Kaiowá, Pataxó, Ye’kwana, Parakaná, Uru-Eu-Wau-Wau, Awa Guajá, Kamari, entre outros. Talvez todos em todas as regiões. No asfalto de Brasília a ocupação golpista da praça e destruição das sedes dos Três Poderes.

Tive a sorte de, na minha formação, ter convivido com grandes antropólogos brasileiros, como Roberto Cardoso de Oliveira, Roque Laraia, Roberto DaMatta, Júlio César Melatti, Gilberto Velho, e me convencer da visão da cultura como elemento mais complexo que nosso uso comum do termo, de definição diferenciada do ser humano, por seus modos, costumes, cosmologias, línguas, sentimentos.

Todos os povos indígenas estão sob ameaça e não só na Amazônia. Em 2021, o Cimi registrou a ocorrência de 305 casos de violência que atingiram pelo menos 226 Terras Indígenas (TIs) em 22 estados do país. No ano anterior, 263 casos de invasão haviam afetado 201 terras em 19 estados. A quantidade de casos em 2021, foi quase três vezes maior do que a registrada em 2018, quando foram contabilizados 109 casos. Os registros totalizaram 355 casos de violência contra pessoas indígenas em 2021, maior número registrado desde 2013, quando o método de contagem dos casos foi alterado. Em 2020, haviam sido catalogados 304 casos.

Como exemplo da extensão territorial do conflito em torno da terra e da vida indígena, menciono os avanços sobre a terra indígena Xokleng Laklãnõ, em Santa Catarina, onde vivem os Xokleng, e também Guarani e Kaingang. Os ataques armados a Pataxós na terra indígena Barra Velha do Monte Pascoal, na região de Porto Seguro.

O ecocídio do Rio Doce pela Vale e Billings Metal (Samarco), que matou o rio divino dos Krenak, o rio Doce, o Watu, em Minas Gerais, no incidente evitável de Mariana. Ainda em Minas Gerais, na região de Brumadinho, os Xukuru Kariri reclamam que a Vale impede seu acesso à terra que ocupam. Essas são apenas umas pinceladas da tela sombria do sofrimento desses humanos-indígenas sob ataque de fazendeiros, garimpeiros, grileiros, posseiros e desmatadores de toda espécie.

O antropólogo Roberto DaMatta nos ajudou a ter a dimensão exata do que significam esses ataques a indígenas, por toda parte do território brasileiro, ao explicar em sua coluna para o Globo "os que chamamos de “índios” são representantes de outras humanidades. São manifestações do humano". E ao nos lembrar que, quando "falamos da atual tragédia Yanomami, estamos de fato nos referindo à agonia de liquidar um modo alternativo de ser humano".

Os povos indígenas como manifestações plurais do humano, outras humanidades integrais, com cultura, emoções, sentimentos e línguas diferentes da nossa, enriquecem e robustecem a espécie humana. O extermínio dessas humanidades diversas empobrece e debilita toda a espécie humana. Os indígenas vivem a floresta, não apenas na floresta, vivem os rios, não apenas nos rios. Por isso, quando destruímos a floresta, ou matamos os rios, destruímos os que nela habitam, como disseram os Awá-Guajá à jornalista Míriam Leitão, em reportagem, com fotos de Sebastião Salgado, ou os Krenak, ao dizerem desolados que o Watu morreu. Não são forças de expressão são manifestações de sentimentos e perdas reais.

O presidente Lula autorizou por decreto o Comando da Aeronáutica a criar Zona de Identificação de Defesa Aérea (ZIDA) sobre o espaço aéreo do território Yanomami e seu entorno, contra todo os tipos de tráfego aéreo suspeito de ilícito, durante o período que durar Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional. Já escrevi aqui sobre a omissão da Força Aérea no controle do espaço aéreo, que permitiu uma frequência de voos na região da TI Yanomami digna de um grande hub metropolitano, com pousos e decolagens em campos de pouso regulares ou clandestinos. Estes últimos proliferaram neste período, chegando aos milhares. Controle ese que já foi feito de forma tão eficaz, que teve, no passado, o efeito de impedir o tráfico de drogas por meio de voos clandestinos e levou os traficantes a descerem para os rios.

Além disso, o decreto restabelece o poder dos agentes da Policia Federal e lbama medidas de polícia administrativa, como a interdição de aeronaves e de equipamentos de apoio às atividades ilícitas, que havia sido bloqueado por Bolsonaro. Determinou também ao ministério da Defesa que forneça a inteligência e a logística a esses agentes para que neutralizem (leia-se, inclusive destruindo) aeronaves e equipamentos relacionados com a mineração ilegal no território Yanomami.

São medidas elementares, que qualquer governo normal teria a obrigação de implementar. Tornaram-se necessárias após a devastação legal, institucional e administrativa promovida por Bolsonaro. Lula também restabeleceu o controle da entrada de pessoas na Terra Indígena, que era feita pela Funai. Quem quisesse, nos governo passados, entrar em TIs para pesquisar, fazer reportagens, documentários precisava autorização da Funai e tinha que seguir uma série de restrições formatadas para proteger os indígenas de doenças que pudessem ser transmitidas por pessoas vindas de fora de seu ambiente.

O ministro Luís Roberto Barroso, relator da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) impetrada pela APIB — Associação dos Povos Indígenas do Brasil, disse em seu despacho que os relatos nela contidos, corroborados pela Procuradoria Geral da República "indicam a ocorrência de uma tragédia humanitária e ambiental de grandes proporções". Diz também que se verificou o manifesto descumprimento das decisões da Suprema Corte por parte da União, Governo Jair Bolsonaro. Houve, ainda, a desculpa insuficiência orçamentária para cumpri-las. Assinalou a violação do "núcleo essencial dos direitos fundamentais à vida, à saúde e à segurança dos Povos Indígenas".

Escreveu o ministro que esses direitos "constituem mínimo existencial necessário à sobrevivência humana e das demais espécie" que não admite restrições fiscais ou de qualquer outra modalidade. Ainda na decisão, registrou que a PGR comprovou o "descumprimento do Plano Sete Terras Indígenas, homologado pelo STF e destinado à contenção dos invasores nas Terras Indígenas Yanomami, Karipuna, Uru-Eu-Wau-Wau, Kayapo, Arariboia, Mundurucu e Trincheira Bacaja". De acordo com Luís Roberto Barroso, o governo Bolsonaro prestou informações falsas sobre as providências por ele adotadas para cumprir esta determinação. O ministro sentiu-se na obrigação de reiterar a determinação à União para que realize a retirada integral e definitiva dos garimpos e invasores destas terras indígenas.

Em outra decisão, o ministro Luís Roberto Barroso deu conhecimento à Procuradoria Geral da República para que apure crime de desobediência por descumprimento das decisões judiciais e promova a responsabilização das autoridades envolvidas. Para ele há relação desses fatos com a crise humanitária na Terra Indígena Yanomami.

A magnitude do despacho de um ministro da Suprema Corte está no reconhecimento de que houve descumprimento de decisão judicial pelo Executivo federal. Desobediência que contribuiu parcialmente para o agravamento da tragédia Yanomami. Ela revela a enorme fratura em nossa engenharia democrática. A democracia brasileira está privada de mecanismos institucionais que imponham o cumprimento de decisão judicial, especialmente da Suprema Corte e, muito especialmente, por parte do chefe do Poder Executivo.

Há uma conexão clara, da perspectiva democrática, entre as ocupações violentas e criminosas, o genocídio de povos indígenas e a invasão violenta e não menos criminosa das sedes dos Três Poderes pela turba açulada pelos que perderam as eleições. São marcos da degradação da democracia brasileira e do colapso de instituições de freios e contrapesos e desvirtuamento da ação de agentes de estado. As instituições falharam na Amazônia e em todos os outros estados onde Terras Indígenas foram violadas. Falharam no Distrito Federal, onde as sedes dos Poderes da República foram violadas.

A retirada dos bandidos das terras indígenas e o retorno da segurança e da proteção a seus povos é parte integral da reconstrução democrática. Na política, o novo Congresso terá a responsabilidade de adotar a legislação necessária para suprir as falhas reveladas pela desordem institucional e administrativa promovida por Bolsonaro. No Judiciário, a responsabilidade será investigar e punir os responsáveis pelas tragédias indígenas e pela intentona golpista de 8 de janeiro.

*  Sérgio Abranches é sociólogo, cientista político e escritor. É autor de “Presidencialismo de coalizão”

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