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A história olhou para o futuro

Na sua posse, o ministro dos Direitos Humanos, Sílvio Almeida, deu a senha. Na posse conjunta das ministras Anielle Franco Sonia Guajajara, a porta do poder se abriu para os excluídos

Sérgio Abranches, para Headline Ideias
#POLÍTICA12 de jan. de 235 min de leitura
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, participa da cerimônia de posse da ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara. Foto: Valter Campanato/Agência Brasil
Sérgio Abranches, para Headline Ideias12 de jan. de 235 min de leitura

Começou no dia 3 de janeiro, quando Sílvio Almeida deu a senha de que a mudança batia às portas do poder político. Em seu discurso, dirigido às maiorias excluídas e às minorias discriminadas, ele disse, como ministro dos Direitos Humanos, que elas "existem e são valiosas para nós". Oito dias depois, um inédito ato de violência política, que ocupou os palácios dos Três Poderes, vandalizando-os e destruindo o plenário do Supremo Tribunal Federal, interrompeu as posses.

Mas, a democracia falou mais alto e abriu, pela primeira vez, a porta do poder político a uma indígena e a uma mulher negra para ocuparem dois ministérios novos e relevantes. A indígena, Sonia Guajajara, foi empossada como ministra dos Povos Indígenas. A Fundação Nacional dos Povos Indígenas, Funai, sempre dirigida por não-indígenas, será presidida por Joênia Wapichana. Anielle Franco assumiu como ministra da Igualdade Racial.

A posse teve momentos de muita emoção e foi toda ela muito simbólica. Sílvio Almeida, em seu discurso, que inaugurou o movimento que culminaria na posse de 11/01, disse que "nosso passado e nosso futuro também estão em jogo nessa nova etapa do país que, agora, se abre diante de nós". O ministro dos Direitos Humanos disse ser "fruto de séculos de lutas e resistências de um povo que não baixou a cabeça mesmo diante dos piores crimes e horrores da nossa história". Convocou a ancestralidade como fonte do poder, "a nossa força é, sobretudo, a força dos nossos ancestrais".

Não por acaso, Sonia Guajajara, em seu discurso, também convocou a ancestralidade e lembrou o duro passado de violência. "Se estou aqui hoje, é graças à força ancestral e espiritual de meu povo Guajajara Tentehar, graças à resistência secular da luta dos povos indígenas do Brasil".

A ministra dos Povos Indígenas definiu bem o momento histórico que abre uma nova trilha para a democracia brasileira. "Sabemos que não será fácil superar 522 anos em 4. Mas estamos dispostos a fazer desse momento a grande retomada da força ancestral da alma e espírito brasileiros. Nunca mais um Brasil sem nós." Toda a posse foi carregada de símbolos, não fossem os símbolos parte integrante das culturas dos indígenas e dos negros brasileiros. A posse da ministra dos Povos Indígenas terminou com a dança das Emas, do povo Terena, que levantaram a ministra acima de suas cabeças no ponto culminante da dança ritual.

Anielle Franco, trouxe o concreto do presente, para nos lembrar do passado e assinalar o futuro. "A cerimônia de hoje guarda um simbolismo muito especial. Depois dos atentados sofridos por esta casa e pelo povo brasileiro no último domingo, pisamos aqui em sinal de resistência a toda e qualquer tentativa de atacar as instituições e a nossa democracia. O fascismo, assim como o racismo, é um mal a ser combatido em nossa sociedade."

Anielle é cria do complexo da Maré, uma área conflagrada do Rio de Janeiro, mas é, também, cria da política afirmativa. Foi da primeira geração das cotas da UERJ, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, uma iniciativa pioneira. Anielle é a prova viva da importância das cotas e do talento que sua ausência fazia o Brasil desperdiçar. Ela sabe da luta secular dos negros contra o racismo no Brasil e também convoca o passado e a ancestralidade para este momento inédito da história que valoriza nosso presente. "Desde o sequestro dos nossos bisavós e tataravós em África, à luta pela garantia de políticas públicas e da existência do Ministério da Igualdade Racial, inclusive no que diz respeito aos recursos orçamentários, temos nos empenhado visceralmente em um projeto de sobrevivência."

O ato simbólico ao final da posse da ministra da Igualdade Racial foi o samba-enredo “História pra ninar gente grande”, na voz de Marina Íris, com o qual a Mangueira levantou a avenida, em 2019, numa explosão de emoções desencontradas, do repúdio ao obscurantismo à alegria de poder celebrar o Brasil verdadeiro. "Brasil, chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês", diz o samba. Faz algum tempo, já, esse esforço imenso para contar a "história que a história não conta", dos negros e dos indígenas.

Sonia Guajajara, ministra dos Povos Indígenas, e Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial, junto ao presidente, Luiz Inacio Lula da Silva, e sua mulher, Rosangela "Janja" da Silva: minorias no núcleo do poder. Foto: Sergio Lima/AFP

Foram dias que o Brasil não esquecerá. A porta da democracia deveria estar aberta a todos e não estava. Os obscurantistas tentaram fechá-la ainda mais, com violência e banditismo. Não prevaleceram e não prevalecerão. Ontem, 11 de janeiro, a República brasileira deu passos importantes para se tornar uma república de iguais. Só seremos uma república democrática na sua integralidade se ela for baseada na igualdade de oportunidades a todas as pessoas e se todo o povo tiver os mesmos direitos e entrada franqueada em todos os ramos do poder. Neste povo estão as mulheres, os indígenas e os negros.

As posses de Sílvio Almeida, de Marina Silva, de Margareth Menezes, de Sonia Guajajara e de Anielle Franco foram muito importantes para todos os brasileiros. Fundamental para os até aqui excluídos do poder, negros e indígenas, para as mulheres, para o nosso patrimônio natural e humano. Importante demais para nós brancos e, principalmente, para nós homens brancos. Aquela diversidade inédita na mesa da posse e nos convidados para a cerimônia tem que impregnar nossos corações e nossas mentes.

Ministras negras no Meio Ambiente, na Cultura, na Igualdade Racial, ministro negro nos Direitos Humanos, ministra indígena para os Povos Indígenas é um ineditismo de que precisávamos e tardávamos demais a ter. É o momento de começarmos a ouvir essas vozes, todas muito potentes, para extirpar de nosso presente e do futuro que escreveremos a mentalidade de casa-grande, colonialista, patriarcal, escravista/racista que nos dominou por séculos. Foi o dia em que a história olhou para o futuro a ser escrito, mostrando o caminho para chegarmos ao Brasil de verdade.

* Sérgio Abranches é sociólogo, cientista político e escritor. É autor de “Presidencialismo de coalizão”.

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