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Análise - A desclassificação das mulheres e negros

O presidente Lula se afasta do progressismo ao recusar os critérios de gênero e raça na escolha para o Supremo Tribunal Federal. Contraria a prioridade declarada no Brasil e na ONU do combate às desigualdades

Sérgio Abranches , para o Headline Ideias
#JUSTIÇA27 de set. de 2311 min de leitura
O presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, durante a cerimônia de lançamento do novo Programa de Aceleração do Crescimento, no Palácio do Planalto, em Brasília, no dia 27 de setembro de 2023. Foto: Evaristo Sá/AFP
Sérgio Abranches , para o Headline Ideias27 de set. de 2311 min de leitura

É chocante ouvir o presidente progressista dizer que gênero e raça não são mais critérios para a escolha de ministro do Supremo Tribunal Federal. De pronto, esse "mais", pode significar que estão superados. Neste caso, ofende a história da persistência do racismo e do patriarcalismo, ou seja do supremacismo branco e masculino. Lula sabe que não foram superados.

Então, o "mais" poderia significa que gênero e raça não são mais critérios para ele, Lula, orientar suas escolhas. Neste caso, ofende sua própria história de superação, de enfrentamento das desigualdades e dos preconceitos.

Tem mais. Lula disse que vai "escolher uma pessoa que possa atender aos interesses e expectativas do Brasil, que possa servir ao Brasil, que tenha respeito com a sociedade brasileira. Uma pessoa que tenha respeito, mas não tenha medo da imprensa."

Se o presidente quiser, pode-se providenciar uma lista longa de magistradas brancas e negras, que se enquadram plenamente nesses critérios. A lista de mulheres não seria menor se acrescentássemos, para melhorar a qualidade da escolha presidencial, critérios mais objetivos como formação acadêmica, carreira na magistratura, notório e notável saber.

“Atender aos interesses e expectativas do Brasil”, não é monopólio masculino ou dos brancos. Há numerosas mulheres, brancas ou negras, no meio jurídico, perfeitamente capazes de atender aos interesses e expectativas do Brasil. Homens negros também. Logo, é perfeitamente possível combinar gênero, raça e esta condição posta pelo presidente.

Ter "respeito com a sociedade brasileira", também não é monopólio de homens brancos. Nem respeitar, sem temer a imprensa. Lula não tem justificativa legítima para afastar gênero e raça como critérios de escolha para a pessoa que substituirá a ministra Rosa Weber, que demonstrou ter todas estas qualidades.

Lula esconde sob essa capacidade genérica sua decisão de fazer uma nomeação pessoal, como Lula, e não como Presidente da República. Esta prerrogativa ele não tem. O direito privativo de nomear ministro do Supremo Tribunal Federal pertence ao cargo de Presidente da República, não à pessoa que o ocupa. Pressupõe, portanto, critérios institucionais e impessoais. O que a pessoa no cargo pode fazer é adicionar critérios que realizem objetivos de justiça social, dar maior representatividade à corte suprema e ter maior proximidade com a orientação ideológica escolhida pela maioria para governar o país.

Bolsonaro apropriou-se desta prerrogativa e fez escolhas pessoais, não institucionais, e hoje temos dois ministros medíocres e desviantes na Suprema Corte.

Lula apropriou-se dela para nomear seu advogado e não foi uma nomeação à altura de outros nomes que tinha à disposição.

O uso arbitrário de prerrogativas constitucionais privativas do cargo de Presidente da República é uma forma de autoritarismo e de nepotismo, ou "amiguismo".

Ação afirmativa contra desigualdades

A sociologia já demonstrou há tempos que a desigualdade durável não é a desigualdade de classe, é a desigualdade categórica. A desigualdade que se dá entre categorias como homem/mulher, branco/negro.

O progressista, que Lula foi e continua a dizer que é, enfrenta com ações afirmativas todas as desigualdades. As de classe, que mudam com as relações de poder entre as classes. As duráveis, congeladas pela supremacia de uma categoria sobre outra, homens sobre mulheres, brancos sobre negros e suas consequências humanas.

Ao se recusar a usar os critérios de gênero e raça para escolher quem substituirá Rosa Weber no Supremo Tribunal Federal, Lula contraria seu compromisso de lutar contra as desigualdades, assumido com a sociedade brasileira e com a comunidade internacional. Como está dito em seu discurso na abertura da 78a Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas.

Por que mulher?

A ministra Rosa Weber, nos derradeiros dias como ministra do Supremo Tribunal Federal e sua presidente, escolheu a ADPF 422, sobre a descriminalização do aborto nas doze primeiras semanas de gestação, da qual é relatora, para fechar sua trajetória na mais alta corte do país. No seu voto ela esclarece o por quê da imperatividade de termos mulheres no plenário do Supremo Tribunal Federal.

O tema é espinhoso. A criminalização do aborto nas doze primeiras semanas de gravidez seria constitucional? Rosa Weber não chegou às suas conclusões fechada no gabinete quase inexpugnável do STF. Ela realizou dois dias de audiência pública, fez outras consultas, pesquisou a bibliografia internacional e a jurisprudência comparada sobre o tema. Este, segundo ela, envolve um autêntico conflito entre direitos e a legitimidade democrática-constitucional.

A ministra não foge de qualquer argumento. O mais usado pelos que se opõem no Congresso é o de que esta é uma questão que devia ser resolvida pelo Poder Legislativo. Rosa Weber nega com firmeza que o STF esteja usurpando poderes do Legislativo. Ela reconhece que a representatividade popular é o centro da democracia e que o Congresso tem o monopólio da legislação.

Mas é também essencial à democracia que os Poderes da República estejam sujeitos às regras e princípios fundamentais da Constituição. Mesmo leis e códigos votados pelo Congresso, se contestados na sua constitucionalidade por quem de direito, deverão ser objeto de verificação pelo STF. É o necessário e democrático controle de constitucionalidade. O Judiciário só age provocado por alguém com capacidade legal para fazê-lo. Portanto nada há de arbitrária nesta decisão.

O voto de Rosa Weber é um exemplo cristalino da visão feminina diferenciada sobre a mulher e seus direitos, com rigor doutrinário e saber jurídico. Reflete a consciência da origem das discriminações e cerceamentos sofridos pela mulher no regime patriarcal ainda vigente no Brasil.

Ela assinala a existência de conflitos de direitos fundamentais na Constituição. Destaca, também, ser uma das questões jurídicas mais sensíveis, "por envolver razões de segunda ordem de natureza ética, moral, científica, médica e religiosa. É, também, uma das questões mais sofisticadas, da perspectiva jurídica, ao lidar com um conflito significativo de direitos fundamentais".

As razões ética, moral e religiosa subjacentes à criminalização do aborto justificam e consolidam a supremacia do pensamento masculino sobre o feminino e a restrição objetiva e subjetiva da soberania da mulher sobre seu corpo, sua consciência e suas escolhas.

O voto paradigmático de Rosa Weber demonstra a imperiosa necessidade de ampliar a participação do pensamento feminino no controle de constitucionalidade. Esta ampliação somente será possível com maior número de mulheres no plenário do STF.

"Por  muito tempo  as mulheres  foram  subjugadas,  excluídas da arena pública e tratadas à margem da sociedade. Participar do mercado de  trabalho exigia a transposição  de obstáculos  quase insuperáveis.  Ter a prática de atos corriqueiros da vida civil. Estavam submetidas, indistintamente, à vontade do estatuto familiar. O que significa dizer a atribuição de papel de coadjuvantes sociais, confinadas às atividades do cotidiano doméstico. Nem mesmo as disposições relativas ao princípio da igualdade constantes das Constituições de 1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1969 foram capazes de romper, por completo, com o ciclo de exclusão e subjugação da cidadania das mulheres. As mulheres tinham seus direitos marginalizados. As mulheres tinham sua dignidade ofendida. As mulheres tinham papéis sociais limitados e pré-determinados. As mulheres eram invisibilizadas. As mulheres não tinham voz. As mulheres não tinham vez.”

A ministra reconhece que houve avanços ao longo da história. Mas, o sistema em si não foi desconstituído. “No entanto, não obstante os passos dados na direção da igualdade como reconhecimento, é certo que a reivindicação da cidadania igualitária entre os gêneros para o exercício dos direitos fundamentais assegurados no Estado Constitucional ainda carece de efetivação. Em particular no que diz com a autodeterminação como elemento estruturante da dignidade da mulher.”

O reconhecimento objetivo, na lei e na Constituição, dos direitos da mulher e da cidadania igualitária não basta. É preciso que sejam efetivados materialmente, no cotidiano da vida doméstica e social.

“Nessa perspectiva e modo de compreender o mundo, a partir da lente da mulher, a maternidade não há de derivar da coerção social fruto de falsa preferência da mulher, mas sim do  exercício livre da sua autodeterminação na elaboração do projeto de vida.”

A dignidade da pessoa humana se concretiza “na autonomia da vontade e na saúde psico-físico-moral, outra conclusão não se justifica: a maternidade é escolha, não obrigação coercitiva.”

Um homem não seria capaz de fazer este voto. Ele poderia até chegar a conclusões similares — e espero que a maioria chegue — mas não da mesma perspectiva, com o mesmo olhar e o mesmo sentir. A abolição do sistema de domínio masculino e branco pressupõe a participação ativa de mulheres e negros nos polos de decisão superior como agentes da decisão e não apenas como demandantes.

Atraso e oposição

O argumento da necessidade imperiosa de mulheres terem voz e voto na Suprema Corte é irrecusável em um pais em que a "legítima defesa da honra" inocentando feminicidas de condenação valeu até o dia 1o de agosto do ano de 2023. Só então, o Supremo Tribunal Federal considerou esse argumento medieval inconstitucional. É este o tamanho de nosso atraso.

A oposição da magistratura masculina ao critério de equilíbrio de gênero no Judiciário de 2a instância é um exemplo da força e resistência do supremacismo masculino. Um critério de paridade, moderado que interrompe o processo de equiparação de gênero, quando a distribuição de cargos atinge a relação 40%-60%.

A ideia inicial seria alternar entre listas mista e só feminina para promoção na magistratura de segunda instância por merecimento e por antiguidade. Logo, a cada duas vagas, uma seria exclusiva para mulheres. A oposição homem-dominante na representação da magistratura, conseguiu restringir o critério apenas às promoções por merecimento. A decisão reduz a velocidade com que se chegará ao limite de aplicação da regra. Mas foi um avanço importante.

Um presidente que se orgulha, nos fóruns internacionais, por ter aprovado a igualdade salarial entre homens e mulheres em cargos de igual qualificação e responsabilidade, deveria ter mais cuidado e respeito com o critério de gênero em suas escolhas. Lula devia adotar a ação afirmativa em todas as decisões de indicação de nomes para a estrutura de poder do estado e do governo. 

Por que negra?

Todos os argumentos sobre a necessidade imperiosa da visão feminina valem até com mais força para os negros, em particular para as mulheres negras. O racismo é filho da escravização. Racismo e patriarcalismo nasceram sob o teto da casa-grande na colônia e persistiram dominantes, mesmo após o ocaso da casa-grande senhorial.

Nos 192 anos do Supremo Tribunal Federal, só houve três ministros negros. Pedro Augusto Carneiro Lessa, nomeado em 1907, por Afonso Pena; Hermenegildo Rodrigues de Barros, em 1919, por Delfim Moreira; e Joaquim Barbosa, em 2003, por Luis Inácio Lula da Silva. Três mulheres, nenhuma negra.  

Lula e a ministra Rosa Weber (E) aplaudem a chegada do novo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Cristiano Zanin, durante sua cerimônia de posse, em Brasília, no dia 3 de agosto de 2023. Foto: Sérgio Lima/AFP
Lula e a ministra Rosa Weber (E) aplaudem a chegada do novo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Cristiano Zanin, durante sua cerimônia de posse, em Brasília, no dia 3 de agosto de 2023. Foto: Sérgio Lima/AFP

Os argumentos do paradigma criado por Rosa Weber sobre a descriminalização do aborto dizem respeito duplamente às mulheres negras. Por serem mulheres e, por serem negras. A maioria dos abortos ilegais mais danosos à saúde da mulher e dos abortos fatais por improvisação, imperícia e más condições sanitárias vitima as mulheres mais pobres e elas são negras. Em geral jovens, muitas no início da puberdade.

Para sabermos por que uma visão de mulher negra na magistratura e, principalmente, na Suprema Corte é fundamental, basta fazermos algumas perguntas às estatísticas sociais e policiais brasileiras.

Quem é a pessoa mais pobre do país, a que ganha o menor salário, a que tem pior acesso ao mercado de trabalho? Uma mulher negra, está nas pesquisas do IBGE.

Quem é a principal vítima nas mortes violentas por armas de fogo nas comunidades periféricas, depois dos jovens negros? Mulheres negras, está nos registros das mortes violentas, em particular dos homicídios.

Quem são as vítimas de feminicídio, a tiros ou facadas, nas comunidades periféricas? Mulheres negras.

Em que categoria de mulheres predomina a gravidez juvenil, muitas vezes na entrada precoce na puberdade? Das jovens negras periféricas.

A justiça precisa da visão de mulheres negras para enfrentar esta realidade. Não adianta uma visão favorável, "protetora", "paternalista", de uma justiça branca masculina.

As virtudes da pluralidade são realidades historicamente verificadas. Não há pluralidade sem pluralismo social e político, e sem diversidade racial e de gênero.

Não há cidadania igualitária, nem direito justo e igualitário se não decorrer de uma pluralidade de vozes e votos igualitários que expresse a sociedade como ela é e não como desejamos ou imaginamos que ela seja. O censo não mente. São 55,9% de negros (pretos e pardos) na população brasileira. São 51,1% de mulheres e 28% negras. 

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