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A cientista sob o encanto do muriqui

Um primata carismático, uma cientista apaixonada por ele, excelência científica e entusiasmo inesgotável. Parece ficção, mas é realidade. Uma realidade que acaba de completar 40 anos

Sérgio Abranches , para Headline Ideias
#MEIO AMBIENTE 21 de jun. de 239 min de leitura
O muriqui-do-norte, Brachyteles hypoxanthus, é um primata criticamente ameaçado, encontrado apenas na Mata Atlântica do sudeste do Brasil. Foto: Reprodução Instagram Projeto Muriqui de Caratinga
Sérgio Abranches , para Headline Ideias21 de jun. de 239 min de leitura

Caratinga nasceu para ser famosa. Não bastasse ser a terra natal de Ziraldo, Ruy Castro e Míriam Leitão, tem a maior população viável de Muriquis-do-Norte, o maior primata das Américas. Um animal carismático, com uma organização social de fazer inveja aos humanos. Eles formam uma sociedade pacífica, vegetariana e igualitária. Vivem como os hippies sonharam viver um dia, em harmonia plena com a natureza, sem distinções entre machos e fêmeas, nem mesmo de tamanho e força. A fêmea escolhe seus parceiros sexuais, pode ter vários parceiros no mesmo período e determina com qual quer procriar. Elas deixam seu grupo, para encontrar seus parceiros em outros. Por ser migrante e aventureira, ela impede a consanguinidade.

Caratinga fica numa região conhecida como “Vale do Aço”, cidade da Zona da Mata de Minas Gerais, economicamente dominada pela siderúrgica Usiminas. Ser do Vale do Aço soa quase como heresia para uma região que tem os muriquis, a maior área de conservação de Mata Atlântica do estado, o Parque Estadual do Rio Doce. Nesta parte do médio Rio Doce há um dos maiores complexos lacustres do mundo com cerca de 150 lagos, 40 deles dentro do Parque Estadual do Rio Doce. Sua formação vem de aproximadamente 9000 e 8000 anos. As lagoas são estruturas delicadas que se mantém, após formadas, pelo afloramento do lençol d’água.

O que os Muriquis, o Parque e os lagos têm em comum são as ameaças à Mata Atlântica. Sem ela, os muriquis desapareceriam, o parque deixaria de fazer sentido e os lagos provavelmente secariam com a mudança no microclima da região. Hoje, o grande desafio da conservação dos muriquis está na criação de corredores que unam os fragmentos, até se encontrarem com o Parque. Esses corredores permitiriam que os muriquis buscassem novos territórios, diante do crescimento de sua população população protegida. Os obstáculos à criação de corredores são o plantio de eucalipto, para atender à siderurgia e pastos, para manter uma tradição ganadeira em declínio. Há grande quantidade de pastos degradados em desuso no entorno da RPPN Feliciano Miguel Abdala que abriga os muriquis. Salvar o muriqui significa salvar a Mata Atlântica e expandi-la para além de seus fragmentos isolados.

Pesquisa salvadora

A pesquisa ligada à conservação liderada por Karen Strier salvou os Muriquis da extinção. Para isto foi preciso que o tropeiro tornado cafeicultor, Feliciano Miguel Abdala, encantado por um jequitibá e pelo carisma dos macacos, decidisse proteger os 1000 hectares de Mata Atlântica para conserva-los, há quase  80 anos. Após sua morte, a família transformou a Fazenda Montes Claros em Reserva Privada do Patrimônio Natural — RPPN.

Karen é uma excepcional cientista da Universidade de Wisconsin-Madinson e membro da National Academies of Sciences — NAS. Foi capaz de unir a curiosidade científica sistemática ao espírito prático da conservação. É comum o gracejo de que determinado pesquisador adquire os modos do animal que pesquisa. Os que estudam morcego, por exemplo, terminariam notívagos. No caso de Karen Strier não é brincadeira. É fato. Sua simpatia é como a dos muriquis. Ela mantém uma atitude inclusiva e igualitária e com ela atraiu dezenas de jovens para o projeto e os encaminhou na carreira científica e nos compromissos da conservação.

Continuidade

O que se viu no seminário de celebração dos 40 anos do projeto Muriqui foi uma história que revigora nossa esperança e nos ensina sobre os valores básicos e as obrigações da humanidade. Vários cientistas falaram com entusiasmo de seu começo estagiando no projeto conduzido por Karen, do desejo de ficar e de como avançaram nos estudos e pesquisas. São, hoje, todos primatólogos de primeira linha. A rotatividade dos estagiários permitiu a formação de vários grupos e o fato de que os que estavam para sair treinavam no trabalho de campo os que estavam para entrar criou um laço de solidariedade e entendimento entre eles.

É pesquisa de excelência, desde que Karen chegou à Fazenda Montes Claros, aos 23 anos, para fazer a pesquisa para sua tese de doutorado em Harvard. Como Feliciano, o carisma dos muriquis a deixaram encantada e incapaz de abandoná-los. Viraram projeto de vida, além de projeto de pesquisa. Nestes 40 anos ela e seus assistentes, depois pesquisadores por conta própria, publicaram incontável número de artigos científicos, teses de mestrado e doutorado. Karen escreveu Faces na Floresta ( no original, Faces in the Forest) um misto de memória e divulgação científica. Além de outros volumes mais voltados para a academia. A primatologia mundial, após as descobertas de Karen, não pode mais deixar de considerar os muriquis, ao tratar de padrões de comportamento de primatas. Viraram referência obrigatória.

Brinquei com eles que enquanto observavam os muriquis eu os observava. Sociólogo é mesmo meio primatólogo de gente. Além disso, a observação jornalística adiciona um outro elemento que torna visíveis aspectos que escapam ao sociólogo. O que vi, como sociólogo foi um notável exemplo de rara continuidade institucional e de um grupo de cientistas muito vocacionado para o que fazem, com um entusiasmo que não se encontra entre cientistas de outras áreas. É uma mistura de encanto dos muriquis com o contágio pelo entusiasmo e paixão de Karen Strier.

Rede pró-macacos

Karen não foi a primeira a ver os muriquis. Quem lhe contou sobre eles foi seu orientador em Harvard, que deles ficou sabendo por um grande primatologista e conservacionista, Russell Mittermeier. Ele esteve no seminário dos 30 anos e estava no de agora, dos 40 anos do projeto. Com sua câmera munida de uma potente teleobjetiva, observava e fotografava os muriquis com o entusiasmo de quem os vê pela primeira vez. Ele admitiu ser encantado pelos primatas da Mata Atlântica, "eles são especiais", confessou.

Quando chegamos à reserva para a visita que encerraria o seminário, fomos recebidos por três distintos grupos de muriquis, em um encontro raro e com direito a muita vocalização. Brinquei com Karen que ela havia combinado tudo com eles. Ela respondeu, "eu queria ter esta influência sobre eles, mas não tenho". Ela é que pensa não ter. Eu já estive na reserva com e sem a Karen. Sem ela, mal pude vê-los. Aliás, houve uma vez que não os vi mesmo, nem indo atrás de sinais de sua presença pelas trilhas. Com Karen, os vejo sempre e frequentemente em situações raras como esse encontro de grupos, ou uma cópula entre as árvores, ou a mãe recusando o peito ao filhote insistente já crescido e no tempo de desmamar. Com ela o nível do encontro com os muriquis é muito mais alto e gratificante do que sem ela.

Bom de ver

Vi muita coisa naquela visita, como sociólogo e como cronista. O carinho, apego e emocionada gratidão de todos à cientista sênior do grupo. A curiosidade entusiasmada de cientistas que querem conhecer mais extensa e profundamente os encantadores primatas produz pesquisa científica de excelência. Não há vez que eu visite a reserva em que não me contem de novas perguntas que estão tentando responder.

Vi, como sociólogo, a formação de um grupo social composto por cientistas de várias gerações unidos pelo objetivo científico, pelo compartilhamento de valores e por laços afetivos que alimentam a cooperação e a solidariedade. Um processo continuado de formação de quadros de primeira grandeza. A formação de uma rede que expandiu a pesquisa para outros fragmentos e propagou a mentalidade que alia ciência, conservação e ambientalismo.

Nesses 40 anos, houve muita inovação. Karen e seu grupo desenvolveram novos métodos de estudo. Descobriram como obter informações necessárias por meio da análise de DNA das fezes dos muriquis. Reuniram enorme conhecimento sobre sua nutrição, que um dia pode ser transformar em pista para nossa própria nutrição e produção de fitoterápicos da Mata Atlântica. Passaram a usar drones com câmeras termais para localizar os animais. Não cessam de buscar novas maneiras de ampliar seu conhecimento.

Liderança e cooperação

Notei, também, no seminário o esforço de promover a informação científica, permitindo a disseminação de conhecimentos que tornem a população do entorno aliada dos muriquis. Uma informação que serve também de isca mágica para o recrutamento de jovens para a carreira científica.

Em um país carente da formação de lideranças inovadoras na política, no meio empresarial e até mesmo nas universidades, impressionava ver a liderança científica sem mandonismo de Karen e de Russell. Os dois são formadores de instituições e redes. É possível ver no Projeto Muriqui todas as vantagens da genuína cooperação acadêmica internacional.

O Projeto Muriqui de Caratinga comemorou os 40 anos de pesquisa com circa de 120 convidados do Brasil e outres paises.  Foto: Reprodução Instagram Projeto Muriqui de Caratinga
O Projeto Muriqui de Caratinga comemorou os 40 anos de pesquisa com crrca de 120 convidados do Brasil e outros países. Foto: Reprodução Instagram Projeto Muriqui de Caratinga

Karen, professora da Universidade de Wisconsin, em Madison, já levou vários de seus auxiliares para terminar sua formação nos Estados Unidos. Mantém uma relação antiga, já, de cooperação e intercâmbio com a Universidade Federal do Espírito Santo. Russell Mittermeier já participou da formação de várias instituições filantrópicas e de pesquisa. Toda vez que está em uma delas, é possível ver sua marca entre os pesquisadores brasileiros.

Um outro Eco

Na função jornalística foi com muita satisfação que vi uma repórter de O Eco cobrindo com propriedade o evento e recebendo elogios por seus trabalhos. O Eco foi criado por Marcos Sá Correa, Kiko Britto e eu, inicialmente com o objetivo de treinar jovens repórteres para a cobertura do meio ambiente.

O projeto deveria se encerrar com a passagem da gestão dO Eco, uma plataforma online para eles mesmos, uma vez treinados. Ver a repórter Duda Menegassi fazendo o que havíamos transmitido aos jovens jornalistas foi muito bom. Porque Duda não é da geração que nós formamos. Eu nem a conhecia pessoalmente.

De repente me dei conta de que me impressionava com a continuidade da missão científica liderada por Karen e havia ali, igualmente, um exemplo de continuidade de uma empreitada jornalística que se aproxima dos 20 anos de existência. Sobreviver no ambiente inóspito do jornalismo no Brasil, mesmo online, não é fácil. Mas, vi que é possível.

* Sérgio Abranches é sociólogo, cientista político e escritor. É autor de “Presidencialismo de coalizão”. 

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